Começou
na mesa do almoço. A família estava comendo – pai, mãe, filho e filha - e de
repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:
- Para a minha família, só serve o
melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira
para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.
- O que é isso, Dolores?
- Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir.
Continuava sorrindo. Dali a pouco
levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se
entreolharam.
- Acho que a mamãe pirou de vez.
- Brincadeira dela...
A mãe voltou da cozinha carregando uma
bandeja com cinco taças de gelatina.
- Adivinhem o que tem de sobremesa?
Ninguém respondeu. Estavam constrangidos
por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.
- Acertaram! - exclamou dona Dolores,
colocando a bandeja sobre a mesa. - Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca.
Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a
gelatina, um pouco assustados.
Sentada à mesa, dona Dolores olhou de
novo para o lado e disse:
- Bote esta alegria na sua mesa todos os
dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais
tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma
lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
- A saúde da minha família em primeiro
lugar. Por isso, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
- Dolores...
Sem olhar para o marido, dona Dolores o
indicou com a cabeça.
- Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada.
Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira atrás de uma cerveja.
Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a
parede.
-Todos encontram tudo o que querem na
nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em
Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
- Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião
secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para
uma platéia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.
- Ela está nervosa, é isso.
- Claro. É uma fase. Passa logo.
- É melhor nem chamar a atenção dela.
- Isso. É nervos.
Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao
contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público
imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o
lado e fazer um comentário afetuoso:
- Todos andam muito mais alegres desde
que eu comecei a usar Limpol nos ralos. [...]
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores
não deixava de conversar com o
marido
e com os filhos:
- Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa
agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas
vezes mais eficiente?
- O quê?
- Sim, os fabricantes de Vida Mansa não
descansam para que você possa descansar.
- Dolores... [...]
Naquela noite o filho levou um susto.
Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a
sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
- Ele tinha horror de escovar os dentes
até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora
escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
- Mãe, eu... .
- Diga você também a palavra mágica.
Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava,
apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. [...]
Dona
Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de
chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca.
Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.
- Ele não sabe, mas estes lençóis são da
nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional
da Santex. Agora tudo pode acontecer...
Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou
para todos os lados antes de abraçá-la também. No dia seguinte certamente
levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia aproveitar. Fazia tanto
tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma
câmara por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas.
Luis Fernando Veríssimo. O nariz e
outras crônicas. São Paulo, Ática.
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