A Onça e o Filhote do Vento







A onça acordou com apetite. Foi lavar o focinho no rio e, enquanto tomava três goles d’água, resmungou:
— Estou com vontade de comer macaco. Um deles mora na perobeira velha. Vou apanhá-lo. O que não percebeu é que um peixinho ouvira tudo e foi contar aquela ameaça ao sapo-boi. O sapo-boi dormia ainda, cansado da serenata que fizera à noite.
— Ei, dom sapo?!
O sapo mexeu-se preguiçosamente e ensonado:
— Glugue… glugue… Que é? O que você quer, me acordando assim de madrugada?!
— Conhece o macaco que mora no alto da perobeira?
— Conheço. É meu amigo. É quem joga para dentro do rio frutinhas maduras.
—Pois sabe o que ouvi a onça dizer agorinha mesmo?! Que hoje, ao almoço, vai comer o macaco. Você, que tanto pode nadar como saltar pela terra, vá avisar o macaco.
O sapo esqueceu-se da canseira e, aos pulos, foi encontrar-se com o coelho.
— Compadre coelho! Você conhece o macaco que mora na perobeira velha?
O Coelho respondeu que sim, conhecia.
— Pois sabe o que me contou o peixe piapara!? Que a onça quer comer esse macaco ainda hoje. Eu não sei andar muito bem pelo meio do mato, mas você, que pode correr e saltar, deve avisar o nosso amigo.
O coelho nem quis ouvir mais. Saiu aos pulos e foi encontrar-se com o serelepe, o bichinho, pendurado num coqueiro, roía os frutinhos amarelos.
— Olá, seu esganado, desça até aqui!
__Que quer você? Um coquinho?
— Nada disso, O macaco da perobeira velha é seu amigo, não é? Pois a onça anda à procura dele para o almoço, O piapara ouviu e contou ao sapo; o sapo veio me dar a notícia e estou aqui para pedir a você que vá avisar o macaco.
O serelepe subiu para a árvore próxima e foi passando de uma a outra, até a perobeira. O macaco estava se penteando e se enfeitando como para um longo passeio.
De longe, o serelepe gritou:
— Ei, amigo macaco! Você tem sorte por estarem casa. Espere um pouco que lhe trago um recado. É  importante!
Subiu para o galho onde estava o dono da casa, e disse:
- O coelho pediu-me que o avisasse. A onça anda aí por baixo à sua procura. Tome cuidado, não desça ao chão. Olhe lá, que a fera cumpre o que promete!
O macaco coçava a cabeça, aborrecido:
— Xi… Justamente hoje não posso ficar em casa! Devo ir ao casamento do meu primo. Preciso enganar a onça!
E o macaco e o serelepe começaram a pensar num modo de enganar a fera. Pensa que pensa, e de repente o macaco gritou:
— Descobri como escapar da bicha! E ainda sou bem capaz de levar o couro dela para o meu primo, como presente de casamento. Você vai ver! Olhe, enquanto me preparo, vá até à beira do rio buscar um punhado de pedrinhas brilhantes. Escolha as que tiverem mais brilho, entendeu?
Nem bem o macaco falara e já o serelepe descia à procura das pedras coloridas.
O macaco estava pronto para o casamento do primo. Trazia também um saco às costas. Dali a pouco, o serelepe chegou trazendo uma porção das tais pedrinhas. O macaco  jogou-as para o fundo do saco e avisou:
— Agora, você vai caminhando à frente. Eu levo o saco e você grita com toda a força: — “Olha o pedaço de Sol que caiu no mato! Caiu um pedaço de Sol!”
O serelepe ia gritando na frente e o macaco seguia com as pedrinhas dentro do saco. Depois de umas dez árvores, encontraram uma na qual se dependurava grande casa de marimbondos. Mal o serelepe gritou, abriram-se na casa dos marimbondos mil janelas e, em cada uma, muito curioso, apareceu um dos ferozes moradores. Dali a pouquinho todos queriam ver o pedaço de Sol caído na mata.
Marimbondos são grandes apreciadores do Sol. Sem a luz e o calor do Sol, não podem viver. Por isso, os gritos do serelepe despertaram tamanha curiosidade. O esperto macaco havia calculado bem que os marimbondos queriam ver o fundo do saco. Enquanto o macaco abria o saco, o seu amigo serelepe subiu para o galho onde estava a casa dos marimbondos.
Dentro do saco, as pedras coloridas brilhavam. E o brilho enganou os bichinhos que foram ver mais de perto. Quando estavam entretidos, ensaiando se deviam ou não entrar de vez, o macaco fez um sinal para o serelepe e este deu tamanho salto no galho que a casa de marimbondos soltou-se e pumba! lá se foi fazer companhia às pedrinhas brilhantes. O macaco fechou depressa a boca do saco e chamou o serelepe:
— Pode descer e trate de arrancar todas as plantas que puder, aqui em roda da árvore. Vamos fazer isso bem depressa porque a onça não demora.
Macaco e serelepe, rapidamente, arrancaram todas as plantas que havia por ali, revolveram a terra e as pedras de modo que o lugar parecia ter sofrido a passagem de forte ventania. Pronto o serviço, o macaco mandou embora o serelepe e sentou-se ao lado do saco, fazendo uma cara de quem está cansado a mais não poder.
Dentro do saco, os marimbondos, furiosos, zumbiam — zuuum… uuum…
Uns minutinhos depois, apareceu a onça. De longe, descobriu o macaco. Mas, quando estava prontinha para dar o bote, pôs reparo naquela desordem no chão e notou o saco que se agitava. Curiosa como toda onça, resolveu saber primeiro o que havia acontecido. Depois, com calma, almoçaria o macaco. Foi se chegando devagar e perguntou com a maior inocência:
— Amigo macaco, que aconteceu por aqui?
E ele, que estava mesmo esperando por aquela pergunta:
—Xiii, se você soubesse, amiga onça! Imagine que me aconteceu esta manhã uma coisa que nunca se passou com nenhum outro bicho. Pois consegui prender o filhote daquele vento que mora atrás da serra, mas, quando ia levando o talzinho para casa, ele tentou escapar e pulou fora do saco. Fui decidido e me agarrei ao rabo do filho do vento. Ele pulava daqui, pulava de lá, subia pelas árvores, derrubava plantas, mas eu não largava do rabo! Não larguei até o danado se cansar. Ufa! Lutei muito para prendê-lo de novo. Ainda está furioso. Quer ouvir o ronco? Encoste o ouvido aqui.
A onça chegou o ouvido ao saco. Lá dentro os marimbondos roncavam de raiva. E ela ouviu: — zuuum… zuuum… uuum…
— É verdade, pensou. O macaco prendeu mesmo o filhote do vento. Estou reconhecendo essa voz: é a mesma do vento-pai quando passa pelo mato! Acho que vale a pena primeiro conhecer esse bicho raro e depois almoçar o macaco.
Assim decidida, a onça disse ao macaco:
— Você não quer me deixar conhecer o filhote do vento? Só um minutinho!
—Nada disso! Nada disso! Gritou o macaco, fingindo-se muito aflito. Vê lá se vou soltar outra vez o ventinho. Não, ele já me deu muito trabalho. Desculpe-me, mas não posso soltá-lo. Não está vendo o estrago que ele fez por aqui?
Isso ainda deixou a onça mais curiosa. Todo bicho bravo é assim mesmo: gosta de se arriscar. Estava decidida a conhecer o filhote do vento. E ofereceu-se para ajudar:
— Olha, macaco, garanto que ele não foge. Nem é preciso abrir toda a boca do saco. Só um pouquinho chega.
O macaco esperava que a onça fizesse mesmo essa proposta.
— Desculpe, amiga onça, mas não tiro o bicho para fora. Só se quiser vê-lo dentro do saco. Você enfia a cabeça e vê como ele é. Quando tiver vontade de sair, é só avisar e abro de novo. Mas, enquanto isso, preciso amarrar a boca do saco no seu pescoço.
A onça pensou, pensou, e quase disse que não. Mas a curiosidade era grande. Não podia perder aquela oportunidade de conhecer uma coisa que nenhum outro bicho ainda conhecia. Depois, então, comeria o macaco com muito mais gosto. E aceitou:
— Está bem, pode abrir. Mas, quando eu avisar, abra de novo a boca do saco para eu tirar a cabeça.
O macaco prometeu que sim, que abriria. A onça enfiou a cabeça no saco e o macaco, mais que depressa, o fechou de novo, dando um laço com muitos nós.
Ah! então é que foi um Deus nos acuda! Os marimbondos, furiosos com a prisão e o logro que o macaco e o serelepe haviam pregado neles, ferretoaram sem dó a cabeça da pobre onça. A bicha dava pulos, berros e taponas. Mas nada de se livrar. O macaco havia amarrado muito bem o saco, e quanto mais ela se mexia, mais presa ficava.
O berreiro da onça foi tamanho que a bicharada veio saber o que se passava. Foram aparecendo o veado, a anta, o cateto, o quati, o tamanduá. Perguntavam:
— Que é isso? Por que esse saco na cabeça da onça?!
O macaco explicou:
— Estão anunciando o fim do mundo. Só os bichos que não tiverem pecado poderão entrar no céu. A onça é muito má, está tão cheia de pecados que ficou com medo de não poder entrar. Está fazendo penitência e pede que todos os animais ajudem. Por exemplo, a mim ela pediu que lhe desse algumas cacetadas bem boas. Depois dessa penitência, será o bicho mais sossegado da mata. Vou agora mesmo fazer o que ela me pediu.
Dizendo isso, deu três fortíssimas bordoadas na pobre onça, que rolava e berrava, sufocada pela falta de ar e pelas ferretoadas dos marimbondos. Em seguida, o macaco perguntou aos outros bichos se não queriam ajudar a penitência da onça. Disseram que sim.
Veio a anta na disparada e deu um empurrão tão forte na fera que a coitada rolou pelo chão. Depois foi a vez do tamanduá. Abraçou a onça com toda a força de seus braços, e com aquelas unhas compridas que tem, o veado chegou e chifrou com vontade, daqui, dali, uma porção de vezes. E pronto… acabou-se a onça! Nem precisou a ajuda do quati e do cateto. A bicha estava bem morta.
— E agora? — perguntaram eles. — Como vai ser? Será que a penitência foi demais?
— Bem, agora vou soltar os marimbondos, respondeu o macaco.
— Marimbondos?! Que negócio é esse?! — gritaram os bichos, assustados. — Nós não queremos nada com marimbondos!
— São os que estão dentro do saco ajudando a penitência da onça.
Ao ouvir isso, todos dispararam na corrida, cada qual para o seu lado, O macaco ficou só e, com cuidado, tirou o saco e soltou os marimbondos. Os bichinhos, tontos com tanta pancada, só pensaram em descansar e lá se foram também. O macaco, calmamente, tirou o couro da onça, limpou-se, penteou-se, e foi ao casamento do primo bugio.
Quando entrou com o couro, foi uma surpresa para a macacada. E ele disse, como se aquilo não tivesse importância:
— Está aqui o meu presente de casamento. E o couro de uma onça que cacei agora mesmo, especialmente para isso. Desculpem se não tive tempo de encontrar onça maior!
Mas, durante a festa, enquanto se divertia e contava a história da caçada, pensou que, muitas vezes, a esperteza e a inteligência valem mais do que a força. E isso acontece, tanto no mundo dos bichos, como no mundo dos homens.



 ( Reconto de Hernani Donato – em Contos dos Meninos Índios – Editora Melhoramentos)



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