O Menino no Espelho – Capítulo II

 


                O CANIVETINHO VERMELHO 

TODA semana eu ganhava de minha mãe dois mil-réis para ir ao cinema. Dava para pagar a entrada, o bonde na ida e na volta, e ainda sobrava para comprar um picolé (ou um saco de pipocas). 
Eu costumava assistir aos domingos, na matinê do cinema Avenida, a animada sessão de bangue-bangue. A molecada vibrava assim que as luzes se apagavam, preparando-se para acompanhar as cenas mais emocionantes, com uma gritaria de fazer o cinema vir abaixo. 
Naquele dia, quando entrei, a fita já havia começado. Não vi os letreiros do princípio, de modo que não cheguei a saber nem como se chamava. Estranhei o silêncio ali dentro, como se não houvesse ninguém na plateia. Depois de me ajeitar no escuro, procurei prestar atenção na tela.  
  Não sei por que diabo passavam naquele dia um filme diferente, sem bandido nem mocinho, tiroteios ou perseguições a cavalo. Era uma história esquisita, meio difícil de entender, passada na Inglaterra: a de um homem que fazia milagres. 
Estavam ele e mais dois companheiros num bar, discutindo sobre a existência ou não de milagres. Depois que os outros foram embora, o homem, já meio tonto de tanta cerveja que havia tomado, levanta a cabeça tombada na mesa e fala, apontando o lustre do bar: 
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo. 
Na mesma hora o lustre vira de cabeça para baixo. 
Ele fica impressionado com aquilo, sai do bar e vai cambaleando pela rua, apoiado na sua bengala. De repente a bengala fica presa pela ponta num ralo de bueiro, em pé sem que ele a segure, como se fosse uma árvore. Então ele ordena, a rir: 
— Pois que vire logo uma árvore! 
Na mesma hora a bengala se transforma numa árvore, cada vez mais alta, cheia de galhos que crescem para cima e para os lados. Ele ri às gargalhadas do milagre que acabou de fazer, quando surge um guarda no maior espanto: 
— Que árvore é essa aí, que não tinha antes? Ao ver o homem, acha suspeito o jeito dele, resolve prendê-lo porque parece embriagado. Mas o homem se livra do guarda com um safanão, falando: 
— Vai para o inferno! 
O guarda sobe feito um foguete em direção ao inferno (apesar do inferno, naturalmente, ser para baixo). Ele mal tem tempo de corrigir, com pena do guarda: 
— Para o inferno não! Para a Califórnia! 
Aí o filme mostra uma confusão dos diabos no trânsito de uma cidade da Califórnia, nos Estados Unidos, acho que Los Angeles. Os guardas americanos abrem caminho para ver o que está acontecendo, e encontram um policial inglês solene e empertigado, farda preta e capacete alto, que tenta comandar o tráfego, perdido no meio dos automóveis. 
No dia seguinte o homem, que trabalha numa loja de fazendas, recebe ordem do patrão para que não vá embora enquanto não arrumar tudo direitinho. Ele passou o dia desenrolando peças de fazenda para mostrar às freguesas, e agora estão todas as peças espalhadas, na maior desarrumação. Sozinho na loja, cansado, doido para ir embora, olha desanimado ao redor, quando se lembra do poder de fazer milagres. 
Foi só bater palmas mandando que tudo voltasse ao seu lugar, e as peças de fazenda começam a se enrolar sozinhas, voando até encontrar seus lugares nas prateleiras. E a loja fica
arrumadinha.  
 Depois de mil e uma peripécias, o homem que faz milagres resolve usar o seu poder para consertar o mundo logo de uma vez, acabar com as guerras e as injustiças, fazer com que todos os países vivam em paz. Então convoca para uma reunião os reis, presidentes, ministros, generais, todos os que mandam nos povos do mundo inteiro. Bastava pensar nesse ou naquele, e cada um ia aparecendo. 
Quando estão todos reunidos, o homem que faz milagres ordena que eles acabem com os desentendimentos de uma vez por todas, façam as pazes e não briguem mais. 
Mas eles não estão de acordo com aquilo, começam a discutir, ninguém se entende, e o homem acaba perdendo a paciência: 
— Já que vocês não se emendam — grita ele — então que este mundo acabe de uma vez! 
No que fala isto, o mundo se abre como se tivesse explodido. Todos saem voando pelos ares, entre casas, automóveis, árvores, vacas e tudo mais. Rolando no espaço, desesperado, o homem ainda tem tempo de pedir: 
— Que tudo volte a ser como era antes do primeiro milagre! 
Na mesma hora ele se vê no bar, levantando a cabeça da mesa e olhando para o lustre: 
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo. 
O lustre continua imóvel, sem se mexer. E o filme acaba. 
FUI para casa impressionado com a história dos milagres. De noite, na cama, continuei pensando no filme, sem conseguir dormir. O que me intrigava era a espécie de milagres que o homem pedia: tudo bobagem, a bengala virar árvore, salvar o mundo, coisas assim. Comigo, seria diferente. Eu haveria de pedir outros milagres. Como, por exemplo... 
— Apaga essa luz que eu quero dormir. 
Era o Toninho. Dormíamos no mesmo quarto. Mais velho do que eu, já estudava no turno da manhã, tinha de acordar cedo. Era assim quase toda noite: eu gostava de ler antes de dormir,
e ele pedindo que apagasse a luz. O botão ficava perto da minha cama. 
E então aconteceu. 
A luz se apagou sozinha, quando olhei para ela como fez o homem no filme e experimentei ordenar que se apagasse. Não precisei pronunciar uma única palavra: foi só pensar e ela se apagou. 
Toninho, virado para o outro lado, não chegou a perceber nada. Certamente achou que eu me levantei e fui até a parede apagar a luz, como fazia sempre.  
Fiquei deslumbrado: quer dizer que eu também podia fazer milagres! Para tirar qualquer dúvida, ordenei mentalmente que a luz se acendesse de novo. li ela se acendeu. 
Que brincadeira é essa? — exclamou o Toninho, virando-se na cama, os olhos cheios de sono:
— Fica acendendo e apagando a luz! Apaga de uma vez! 
Para que ele não desconfiasse, tornei a apagar a luz, desta vez por mim mesmo, sem milagre nenhum. 
Nem voltei para a cama. De pé, no escuro, mandei que a noite se acabasse e o dia nascesse de uma vez. E vi pela janela o céu começar a clarear rapidamente, o sol subindo no horizonte como um balão. Toninho se ergueu na cama, esfregando os olhos: 
— Puxa, como eu dormi! Já deve ser tarde, vai ver que perdi a hora. 
E vestiu correndo o uniforme do colégio. 
Depois de me vestir também, saí para o quintal, disposto a iniciar a minha vida de milagres. O primeiro que fiz foi ao dar com a Fernanda: 
— Gosto tanto de você, Fernanda, que vou fazer aparecer uma porção de galinhas iguais a você aqui no quintal. 
No mesmo instante o quintal se encheu de galinhas, todas parecidas, a ponto de eu não saber qual era a Fernanda. Eram todas do mesmo tamanho e da mesma cor. Naquele momento a Alzira cozinheira surgiu na escada da cozinha para bisbilhotar, como fazia sempre, e depois ir contar para mamãe. Esbugalhou os olhos, levantou os braços e quase caiu para trás, ao ver tanta galinha. Embarafustou-se pela casa adentro, a gritar: 
— Dona Odete! Acode, dona Odete! Vem ver uma coisa! 
Sem perda de tempo, mandei que as galinhas sumissem, só ficasse a Fernanda. Quando a Alzira voltou, acompanhada de mamãe, só havia uma galinha ciscando distraída na caixa de areia, como de hábito. 
— Onde é que você viu tanta galinha, Alzira? Ficou maluca? — e minha mãe sorriu, balançando a cabeça. 
A Alzira olhava o quintal, com cara mesmo de maluca: 
— Eram mais de mil! Agorinha mesmo, não faz nem um minuto! Eu vi! Juro pelo que há de mais sagrado! 
Resolvi pensar um pouco, antes de fazer outras proezas. O meu poder tinha de ser bem aproveitado. Eu não sabia se ia usá-lo o tempo que quisesse ou só para certo número de milagres. O jeito era usar o próprio poder para ficar sabendo. 
— Quantos milagres eu posso fazer? Dura o tempo todo, esse poder, ou acaba de uma hora para outra? 
Ninguém me respondeu. Não havia ninguém mesmo para responder, a não ser o Godofredo, e que é que um papagaio entende de milagres? Eu não sabia   nem mesmo a quem me dirigir. Se fosse Deus que tivesse me dado aquele poder, Ele também não respondeu. Com certeza não estava querendo se comprometer. 
— Então está bem — concluí: — Vamos tirar o melhor proveito disso. 
UM DOS sonhos da minha vida era ter em casa uma piscina. Tinha aprendido a nadar, já havia disputado mesmo uma competição na piscina do Minas Tênis Clube, categoria de petiz, pretendia me tornar campeão, nadando no mínimo tão bem como Tarzã. Gostava também de mergulhar, embora achasse que o fôlego mal dava para a gente se distrair debaixo d'água, não mais que um minuto e pouco. Agora, poderia fazer o milagre de ficar sem respirar o tempo que
quisesse. 
E mais: sempre imaginei uma piscina que tivesse numa de suas paredes um túnel para, através dele, chegar a um esconderijo que fosse só meu, um lugar que só eu soubesse existir. Uma espécie de salão subterrâneo sem outra entrada que não fosse pelo túnel debaixo d'água. Lá dentro eu teria todas as coisas de que mais gostava: meus brinquedos, meus livros, meu futebol de botão, minhas bolas de gude, minha coleção de selos, de figurinhas, de marcas de cigarro. Tudo ali era automático: bastava apertar um botão e se abria uma janelinha na parede, aparecia um cachorro-quente; várias torneirinhas comandadas por botão deixavam
escorrer groselha, soda limonada, guaraná, laranjada e tudo quanto é espécie de refrescos.
Haveria a qualidade e a quantidade que eu quisesse de sorvete, doce, bala, bombom. Puxando uma alavanca, eu fazia o teto se abrir numa espécie de claraboia, por onde podia ver o céu e até empinar um papagaio. Teria um telescópio também, dos mais possantes do mundo, para ver a lua e as estrelas. E tudo que eu quisesse. 
Era o que eu imaginava na cama, antes de dormir, sem acreditar que um dia tudo viesse a ser realidade. Ali estava a oportunidade, e não perdi tempo: mandei que a caixa de areia virasse uma piscina, com tudo o que eu tinha imaginado. 
O susto que a Fernanda levou quase me mata de rir: a coitada mal teve tempo de saltar para a terra, quando viu a areia em que pisava se converter na água azul de uma bela piscina. 
Tirei a roupa e pulei de cabeça. 
Logo encontrei o túnel, que era curto como eu tinha previsto, uns três metros de comprimento. Foi fácil atravessá-lo debaixo d'água. Uma curva para cima, como eu tinha imaginado, levou-me à saída, que era uma espécie de poço no chão, com uma escadinha de
metal, dessas que toda piscina tem. Encontrei toalhas para me enxugar e um roupão para vestir. Eu ria de felicidade: tudo o que eu queria ali estava. Aquele era o meu mundo, o meu domínio, a que só eu   tinha acesso. Eu me sentia um verdadeiro rei. 
Tinha de tomar cuidado para que não descobrissem o meu segredo. Ninguém acredita em milagres. E eu não sabia como usar o meu poder para não deixar que ficassem sabendo. Ao voltar para o quintal através da piscina, vi no alto da escada da cozinha, a Alzira estatelada de espanto. Ao dar por mim, ela entrou correndo pela casa adentro: 
— Socorro, dona Odete! Deus nos acuda! Vem ver uma coisa! 
Mamãe veio com ela e, como da outra vez, não viu nada: eu já havia mandado que a piscina voltasse a ser uma simples caixa cheia de areia. 
— Essa mulher não está boa da bola — mamãe comentou, resignada: — Onde é que você viu piscina? 
A Alzira agitava os braços para o céu, aparvalhada: 
— Sou capaz de jurar! Sou capaz de jurar! 
Passei o dia inteiro experimentando com cautela o meu poder. Ordenei que o dia se convertesse em feriado, para não precisar de ir à escola. Em pouco era o Toninho que regressava do colégio, todo satisfeito: 
— Suspenderam as aulas. Hoje é feriado. 
— Feriado como? — estranhou minha mãe. 
— Sei lá — disse ele: — Dia santo, acho. 
— Dia santo? — mamãe estranhou mais ainda: — Que santo é esse, que eu não estou sabendo? 
— Dia de São Nunca, mamãe — informei, satisfeito. 
E fui para o quarto fazer a lista das coisas que eu queria que acontecessem, para experimentar uma por uma. A primeira delas... 
BEM, aí é que estava o problema, tantas foram as ideias que me vieram ao mesmo tempo.
Uma, por exemplo, que foi sempre um grande sonho meu: ficar invisível. Mas, pensando bem, para que eu queria ficar invisível? Que vantagem havia no fato de não ser visto pelos outros? A única que me ocorreu foi a de entrar no cinema sem pagar. Mas corria o risco de alguém se sentar em cima de mim, pensando que a poltrona estivesse vazia. 
Em todo caso, fui ao espelho e falei para a minha imagem: 
— Fique invisível! 
O susto da minha vida: na mesma hora vi a minha roupa vazia, flutuando no ar, os meus sapatos se mexendo sozinhos, as calças sem minhas pernas dentro, as mangas da blusa sem braços, a gola sem pescoço e eu sem cabeça. Era mesmo para assustar qualquer um! Já ia tirar a roupa toda para que desaparecesse até a forma do meu corpo, mas achei mais prático fazer a roupa se tornar invisível também. Não seria nada engraçado se tivesse de voltar a ficar visível
e aparecesse pelado na vista de todo mundo. 
Senti uma grande aflição quando não vi mais nada diante do espelho. Tive   que me apalpar para saber que ainda estava ali. 
Saí do quarto e fui ver o que acontecia. Passei pela minha mãe na sala e ela olhou através de mim como se eu não existisse. Não resisti e chamei-a: 
— Mamãe... 
Ela olhou em direção à minha voz: 
— Fernando? Onde é que você está? 
— Aqui... — e fui me colocar às suas costas. Ela se voltou na cadeira: 
— Aqui onde? Por que você está se escondendo? 
Ao ouvir de novo minha voz, vinda agora de outra direção, ela se levantou, desnorteada, deu uma volta completa com o corpo, inspecionando a sala inteira. Depois se curvou para olhar debaixo da mesa: 
— Onde é que se meteu esse menino, minha Nossa Senhora. 
Embarafustei-me rindo pelo corredor adentro, fui até a cozinha. Dei com a Alzira de costas para mim, diante do fogão. Fiquei rente dela, e comecei a destampar as panelas, para ver o que tinha dentro.
Nem cheguei a ver: ela soltou um berro e pulou para trás, ao dar com as tampas se erguendo no ar. Então peguei numa panela pelo cabo e a levei até a mesinha ao lado da pia. Ela acompanhou com olhos arregalados a panela no ar, botou a boca no mundo: 
— Te esconjuro! Virgem Santíssima, tem dó de mim! Essa casa tá mal-assombrada! 
E disparou em direção à porta dos fundos, levando um trambolhão ao esbarrar de cheio em mim: 
— Ui, que é isso? Ai, meu santo, tem demônio aqui pra todo lado! 
Num segundo ela despencava escada abaixo, indo se refugiar no seu quarto. Refeito do susto que levei eu próprio, quando ela quase me atirou ao chão, fui atrás. Por pouco não atropelo a Fernanda, que estava no meio do quintal, e não se afastou para me dar passagem. Pela janelinha do barracão vi a cozinheira ajoelhada no chão diante de um santinho pregado na parede, fazendo o nome-do-padre, um atrás do outro. 
Antes de reaparecer, resolvi ainda passar um susto no Godofredo. Cheguei bem pertinho do poleiro e o papagaio ficou com aquele olhar parado assuntando o ar, como se tivesse ouvido algum barulhinho. Quando ia cutucá-lo com o dedo, para derrubá-lo do poleiro, o miserável virou rápido a cabeça e me deu uma bicada na mão. Quem se assustou fui eu: 
— Desgraçado, você me paga por essa papagaiada. 
Chegou a sair sangue. Como é que ele teria me visto? 
Só quando voltei ao meu quarto, antes de me tornar visível, é que reparei que o dedo ficou sujo de fuligem quando mexi nas panelas. 
PENSEI em experimentar outros milagres: ler o pensamento das pessoas, adivinhar o futuro, voltar ao passado, enxergar através das paredes, diminuir ou aumentar de tamanho como Alice no Pais das Maravilhas, ouvir de longe o que os outros falavam, ver à distância como um binóculo, enxergar micróbios como num microscópio, ter a força do Super-Homem, e outras coisas fantásticas que sempre senti vontade de fazer. Mas tudo isso agora me parecia
bobagem. Que adiantava saber o que os outros pensavam, ou estavam fazendo atrás das paredes, ou falando longe de mim? 
Mas da ideia do Super-Homem passei a outra, esta sim, absolutamente sensacional: eu queria conhecer ao vivo um dos meus heróis, Tarzan em pessoa! 
— Quero conhecer Tarzan. 
No mesmo instante ouvi lá fora o famoso grito do Filho das Selvas, tão meu conhecido e impossível de ser imitado: 
— Oôôôiôiiiôiôôôu!  
Era o mesmo grito com que ele chamava Tantor, o elefante, nos momentos de perigo. Ouvi uns guinchos e dei com a Chita a meu lado, puxando-me o braço. A macaca me levou até o quintal e lá estava Tarzan, enorme, colossal, à minha espera. Abaixando-se, mandou que eu subisse às suas costas. Num salto se dependurou num galho da mangueira, dali para outro galho mais alto, outro ainda, e lá fomos nós, Tarzan já se balançando num cipó comigo às
costas, lançando-se no ar, entre as folhas verdes e os galhos das árvores de uma imensa floresta. Para onde estaria me levando? Eu abria bem os olhos, para não perder nada daquele
passeio pela selva, nas costas de Tarzan. Aquilo era mais assustador que a montanha-russa, eu morria de medo de cair e me esborrachar lá embaixo. Mal conseguia me segurar nos ombros largos e suados do Homem-Macaco. 
E o pior é que ele começou a sentir cócegas. À medida que minhas mãos iam escorregando em suas costas ele se sacudia todo, rindo cada vez mais. Eu é que não achava graça nenhuma,
quase me despencando daquela altura. Já havia imaginado Tarzan nas situações mais fantásticas, mas nunca rindo às gargalhadas. 
Antes que caísse ali de cima, mandei que ele se transformasse num para-quedas. E vim descendo de mansinho, como se tivesse saltado de um avião, até cair no quintal da minha casa. 
Estava decepcionado com Tarzan: só não mandei que fosse para o diabo porque me lembrei do guarda naquele filme. Mas eu era mais poderoso, eis tudo. Era capaz de fazer mais prodígios do que ele, até do que Mandrake. 
Seria mesmo? 
Resolvi convocar o famoso mágico. Ele logo me apareceu com a sua capa preta e cartolinha na cabeça. Tinha o ar cansado e sua casaca me pareceu meio velha e surrada, como a de um mágico de circo. Vinha seguido de Lotar, seu fiel ajudante. Preferi dispensar o negrão: 
— Você não. Pode ir embora. 
Lotar fez uma curvatura em despedida e se evaporou no ar. Então perguntei ao Mandrake: 
— Quem é mais poderoso? Quem faz mágicas ou quem faz milagres? 
— Quem faz milagres — respondeu ele modestamente. 
— Então sou mais poderoso que você. 
— Não, porque o seu poder vai acabar, e o meu vai continuar eternamente. 
— Como é que você sabe? 
— Sei, porque o meu mundo é o das figurinhas, onde tudo dura para sempre, ao passo que, no seu, tudo começa e acaba. 
Agarrei-me à sua mão, ansioso: 
— Quando é que vai acabar o meu poder de fazer milagres?  
-- Quando você quiser. 
— Nunca vou querer. 
— É o que você pensa. 
— Então faz uma mágica bem boa para mim. Ele tirou a cartola, me olhou no fundo dos olhos, como se estivesse me hipnotizando, e falou: 
— Meta a mão nesta cartola, que tem uma coisa para você. 
Fiz como ele mandava e tirei da cartola um canivetinho vermelho. Tinha várias lâminas e até uma tesourinha, mas não passava de um canivete. Achei aquela mágica meio boba. Em todo caso, era um presente dele — embora eu, com o meu poder milagreiro, pudesse conseguir coisa mil vezes melhor. 
Sem uma palavra, ele botou a cartola na cabeça, fez meia-volta e se afastou, saindo para a rua pelo portão da frente, como uma pessoa qualquer. 
FIQUEI impressionado com o que o Mandrake me havia dito. A minha sensação era de que o poder de fazer milagres ia se acabar de uma hora para outra. Por via das dúvidas, resolvi empurrar a noite mais para diante e fazer ainda um grande milagre naquele dia. 
Qual podia ser? 
De súbito me ocorreu uma ideia, saltei de alegria: 
— Eu quero visitar o Sítio do Pica-pau Amarelo! 
No mesmo instante me vi andando por uma estradinha, passei por uma porteira, e lá estava a Narizinho Arrebitado sentada nos degraus da varanda do famoso sítio, tendo Emília a seu lado.
Mandei que a tarde se prolongasse o tempo que eu quisesse e passei toda ela conversando com aquele pessoalzinho, um por um. O Visconde de Sabugosa me pareceu muito mais engraçado pessoalmente que nos livros. Veio me cumprimentar todo emproado, tirando a cartolinha num salamaleque: 
— Bem-vindo a esta casa, Dom Fernando. 
O Marquês de Rabicó me espiava de longe, meio encafifado com a minha aparição, mas acabou se chegando, a mexer no ar o seu rabinho de saca-rolha. Depois Dona Benta veio me oferecer umas mães-bentas e uma deliciosa xícara de chocolate. Tia Anastácia estava resmungando lá na cozinha, até parecia a Alzira, só que era preta e gordona. Estava se queixando do Pedrinho, que certamente fizera mais uma de suas travessuras. 
Quando me viu, Pedrinho me chamou de lado e perguntou se era verdade que eu sabia fazer milagres. 
— Mais ou menos — respondi, encabulado. — Eu queria que você fizesse um para mim — pediu ele: — É por causa da tia Anastácia. Ela não acredita que a terra é redonda e que os japoneses estão de cabeça para baixo, só   não caem por causa da atração da Terra. 
Com o ar superior de quem sabe as coisas, falei: 
— É a lei da gravidade. É só acabar com ela, para ver o que acontece. 
Não era propriamente uma ordem, nem mesmo um pedido de milagre, mas soou como se fosse. E de repente Pedrinho à minha frente, eu, Narizinho na varanda, a varanda, o sítio inteiro com a Emilia, o Visconde, o Marquês, a Dona Benta, a tia Anastácia, as árvores, as casas, tudo saiu voando pelos ares como numa tremenda ventania. Me lembrei do filme sobre o homem que fazia milagres e, entre duas cambalhotas, mal tive tempo de fazer como ele,
pedir depressa para acabar com aquilo, voltar ao que era antes dos milagres. 
— Apague essa luz que eu quero dormir. Era a voz do Toninho. Abri os olhos e vi que eu estava na cama, pronto para dormir. Olhei intensamente para a luz e mandei que ela se apagasse.
Nada aconteceu. Então fui até lá e apertei o botão. Voltei para a cama e em pouco tempo estava dormindo. 
Ao acordar, mal me lembrei dos milagres, senão de maneira confusa, como se tudo não tivesse passado de um sonho. Mas depois de vestir a roupa, ao meter a mão no bolso da calça, encontrei um objeto, retirei para ver: era um canivetinho vermelho. 


Fernando Sabino

Nenhum comentário:

Postar um comentário