O Menino No Espelho - Capítulo VI









POUCO tempo depois eu iria viver uma das experiências mais fantásticas da minha vida. 
Tudo começou com aquela máquina fotográfica, marca Agfa, em forma de caixotinho. Gerson não deixava que ninguém pusesse a mão nela, a não ser quando ele próprio queria ser
fotografado. Então contava seis passos e ia postar-se diante da máquina, enquanto alguém, a seu pedido, de costas para o sol, com o cuidado de quem segura um alçapão com passarinho dentro, apenas apertava o botão. Quase sempre aparecia na foto, além do fotografado, a sombra comprida de quem batia a chapa. 
As câmeras fotográficas eram verdadeira preciosidade, e quem tinha uma, como o Gerson, despertava inveja em todo mundo. 
Um dia ele me disse que ia fazer uma experiência. Mandou que eu ficasse junto ao muro branco do quintal, como se estivesse conversando com alguém. Depois de bater a foto, fez com que eu passasse para o lugar desse alguém, e sem rodar o filme tornou a fotografar. 
Revelada a foto, veio me mostrar o resultado, me enchendo de assombro: um retrato em que eu aparecia duas vezes, como se fosse outra pessoa, conversando comigo mesmo! 
Tenho até hoje essa foto, que deu margem a tantas fantasias, quando eu era menino: ficava a contemplá-la, fascinado, pensando como seria bom se realmente existisse uma pessoa igual a mim. 
Minha aspiração naquela época era esta: encontrar um sósia. Não pensava em outra coisa, desde que assisti a um filme em que o ator fazia dois papéis: vai passando por uma rua e de repente esbarra num homem absolutamente igual a ele. Os dois se olham, espantados. Só que um era detetive, o outro era bandido, o que acabava criando uma grande confusão. 
Mais tarde fiquei sabendo que o truque era o mesmo que o Gerson havia usado com a sua máquina de retratos: expor duas vezes o mesmo filme. 
A partir de então, passei a procurar um sósia. Onde quer que eu fosse e houvesse outros meninos como eu — na escola, no circo, no cinema, no campo de futebol — buscava encontrar alguém parecido comigo. E procurava com   tanta intensidade, com tamanha certeza de encontrar, que não tinha dúvida alguma: mais cedo ou mais tarde esbarraria com um, como o detetive naquela fita. 
Só não poderia jamais imaginar que seria da maneira como um dia aconteceu. 
Nas minhas buscas, não deixei de encontrar meninos bastante parecidos comigo. Na associação de escoteiros havia um, chamado Luisinho, que era a minha cara, cuspida e escarrada. Mas só de longe: se a gente observasse de perto, acabava descobrindo uma porção de diferenças. Ele era um pouquinho mais baixo do que eu, meio dentuço e tinha os cabelos mais claros. Sua voz também era diferente da minha, fina e esganiçada, e ao falar ele tinha o hábito, que eu não tinha, de franzir a cara como quem está com dor de barriga. Enfim: era completamente diferente de mim. 
Mesmo os gêmeos que eu conhecia não eram lá tão iguais como se dizia. Na nossa classe havia dois irmãos gêmeos, o Beleléu e o Catatau. Eram parecidíssimos, a ponto de ser confundidos pela professora. Mas se a gente reparasse bem, descobria que um tinha o rosto mais fino que o outro, não sei se o Beleléu ou o Catatau, e um tinha uma verruga no queixo que o outro não tinha, não sei se o Catatau ou o Beleléu. De qualquer maneira, tivesse eu um irmão gêmeo como eles, e já me daria por muito satisfeito. 
POR que diabo eu queria encontrar alguém igual a mim? É o que ficava pensando, a olhar a minha própria figura refletida no espelho. Eu não achava graça nenhuma em mim, confesso que desde então eu já não era o meu tipo. Mas era comigo mesmo que eu tinha de viver e, neste caso, um menino feito aquele ali diante de mim é que eu gostaria de encontrar, sem tirar nem pôr. Um menino que, em tudo e por tudo, fosse absolutamente igual a mim — porque do contrário não tinha graça. Que falasse como eu, se vestisse como eu, andasse como eu, pensasse e sentisse como eu. Juntos, nós dois seríamos capazes de tudo, das melhores brincadeiras, e até mesmo conquistar o mundo. 
E ficava horas me observando, fazendo caretas e gatimonhas para a minha figura, falando comigo mesmo como se fosse outra pessoa: 
— Agora, por que você não cala a boca e escuta o que eu estou falando? Por que tem de ficar me imitando, repetindo tudo que eu faço? 
Levantava a perna, e ele levantava também, ao mesmo tempo. Abria os braços, e ele fazia o mesmo. Coçava a orelha, e ele também. 
Mas o que mais me intrigava era a única diferença entre nós dois. Sim, porque um dia descobri, com pasmo, que enquanto eu levantava a perna esquerda, ele levantava a direita;
enquanto eu coçava a orelha direita, ele coçava a esquerda. Reparando bem, descobria outras diferenças. O escudo da escola, por exemplo, que eu trazia colado no bolsinho esquerdo do uniforme, na blusa dele era no direito. 
Para testar, coloco a mão direita espalmada sobre o espelho. Como era de esperar, ele ao mesmo tempo vem com a sua mão esquerda, encostando-a na minha. Sorrio para ele e ele para mim. Mais do que nunca me vem a sensação de que é alguém idêntico a mim que está ali dentro do espelho, se divertindo em me imitar. Chego a ter a impressão de sentir o calor da palma da mão dele contra a minha. Fico sério, a imaginar o que aconteceria se isso fosse verdade. Quando volto a olhá-lo no rosto, vejo assombrado que ele continua a sorrir. Como, se agora estou absolutamente sério? 
Um calafrio me corre pela espinha, arrepiando a pele: há alguém vivo dentro do espelho! Um outro eu, o meu duplo, realmente existe! Não é imaginação, pois ele ainda está sorrindo, e sinto o contato de sua mão na minha, seus dedos aos poucos entrelaçarem os meus. 
Puxo a mão com cuidado, descolando-a do espelho. Em vez da outra mão se afastar, ela vem para fora, presa à minha. Afasto-me um passo, sempre a puxar a figura do espelho, até que ela se destaque de todo, já dentro do meu quarto, e fique â minha frente, palpável, de carne e osso, como outro menino exatamente igual a mim. 
— Você também se chama Fernando? — pergunto, mal conseguindo acreditar nos meus olhos. 
— Odnanref — responde ele, e era como se eu próprio tivesse falado: sua voz era igual à minha. 
— Odnanref?  Sim, Odnanref. Fernando de trás para diante. Era em tudo semelhante a mim, menos em relação à direita e à esquerda, que nele eram ao contrário, sendo natural, pois, que seu nome, isto é, o meu, fosse ao contrário também. Por uma coincidência, Odnanref era o meu nome de guerra, na sociedade secreta Olho de Gato. 
— Por isso mesmo — confirmou Odnanref, dando-me um tapinha nas costas e rindo, feliz: 

— Foi você que me desencantou, adotando o meu nome. Senão eu jamais teria vindo, pois a lei do mundo dos espelhos proíbe terminantemente que a gente venha ao mundo de vocês. A menos que alguém consiga desvendar o nosso encanto. O meu era esse, e você adivinhou. Eu só estava esperando que você me puxasse, como acabou de fazer. O contrário é possível, como aconteceu com Alice, que passou para o lado de dentro do espelho e foi nos visitar.
Também, até hoje foi a única a realizar essa proeza. 
Depois de esfregar os olhos e me certificar de que não estava sonhando, voltei-me para o espelho, procurando ver nele a minha figura refletida. Se visse,   seria capaz de retirá-la também? E quantas vezes isso aconteceria, para formar uma verdadeira legião de meninos iguais a mim? Mas simplesmente não vi ninguém no espelho, como aconteceu quando fiquei invisível. 
No espelho eu via apenas refletidos os móveis do quarto atrás de mim. E a porta de entrada, que acabava de se abrir para o Toninho entrar. 
Foi ele aparecer e Odnanref de um salto se agachou rapidamente, escondendo-se atrás da minha cama. 
— Que é isso, Fernando? Falando sozinho? — estranhou meu irmão. 
Disfarcei como pude, até que ele saísse do quarto. O meu sósia reapareceu, com um suspiro de alívio: 
— Puxa, por pouco ele não me vê! Precisamos tomar cuidado e combinar umas coisas, para que isso não torne a acontecer. 
DESLUMBRADO com a perspectiva de ter alguém igual a mim, como um perfeito irmão gêmeo, eu não imaginava as dificuldades que iria enfrentar. A falta de minha imagem no espelho, por exemplo, era uma delas: me criava problemas para pentear os cabelos ou escovar os dentes sem poder me ver. 
Combinamos que, a partir de então, ele me substituiria quando eu quisesse, mas jamais deveríamos ser vistos juntos. Ninguém poderia desconfiar de nossa existência dupla, pois com isso se acabaria o encanto, significando o seu imediato regresso, para todo o sempre, ao interior do espelho. 
Em compensação, ele me revelou uma surpresa a mais, como se fosse pouco o milagre de sermos dois: sempre que eu quisesse, poderia ver, ouvir, pensar e sentir tudo o que ele via, ouvia, pensava e sentia. Se ele comesse um doce, por exemplo, eu podia sentir o gosto; se achasse graça em alguma coisa, eu podia rir, mesmo que estivesse a quilômetros de distância.
O importante é que só se dava quando eu quisesse: das coisas ruins ou simplesmente sem graça eu me dispensaria de tomar conhecimento. 
O que significava que ele poderia tomar remédio em meu lugar. E assistir às aulas mais cacetes (para mim eram quase todas), sem que eu deixasse de aprender o que nelas se ensinasse.
Poderia até mesmo fazer provas para mim, enquanto eu ia empinar papagaio, pegar passarinho, jogar pião ou bola de gude. 
E assim foi, durante algum tempo. Nunca me diverti tanto. Só que eu tinha de tomar muito cuidado para não trair o meu segredo. Às vezes me distraia e minha mãe surgia no alto da escada da cozinha: 
— Uai, Fernando, como é que você já está aí embaixo no quintal, se ainda agora te vi lá no seu quarto? Por onde você desceu? 
Passava outros apertos, como o da blusa do uniforme de Odnanref, que era ao contrário, o escudo do lado oposto. Tínhamos de trocar de blusa todo dia que ele ia à aula em meu lugar.
Até o cabelo criou problemas: eu partia do lado esquerdo e ele do lado direito. Tivemos de acabar ambos partindo ao meio. 
Pois um dia eu é que acabei por distração indo à aula com a blusa dele. A  professora percebeu o bolso do lado direito, tive de inventar uma história complicada para explicar aquilo: um colega me havia arrancado o bolso numa briga e a costureira pregou do lado errado... Não sei se ela acreditou. Mas o pior é que Odnanref era canhoto, e quanto a isto não podíamos fazer nada. Quando ele ia almoçar com minha família, para que eu pudesse ficar vadiando na rua, era difícil disfarçar, pois não sabia segurar o garfo com a mão direita. E na escola era pior ainda, já que só escrevia com a mão esquerda. Tive de inventar que eu estava treinando para usar ambas as mãos, tinha jeito com as duas, tanto fazia usar uma ou outra. E as pessoas grandes ficavam admiradas, dizendo que nunca haviam percebido que eu era ambidestro. Mais uma palavra nova que eu aprendia. 
Odnanref me revelava verdadeiras maravilhas. Conhecia coisas do outro mundo. Me contou que existe vida em outros planetas, em milhões deles, com tudo igual â vida na Terra, reprodução exata de tudo que aqui acontece, as mesmas pessoas, os mesmos países, os mesmos problemas. Que no mundo dos espelhos, de onde ele viera, era possível viajar para o passado, correr os séculos até o princípio dos tempos e a criação do universo. Ou ir para o futuro, saber o que aconteceria de hoje até o final dos tempos. E mais — ele dizia com a sua voz igualzinha à minha: 
— Todo mundo tem na vida uma oportunidade de ser dois. Nos momentos de coragem, por exemplo, em que a pessoa faz coisas que se julgava incapaz. Os atos de heroísmo, nos
instantes de perigo, quando a gente é capaz de pular um muro ou subir numa árvore que normalmente seria impossível de conseguir, quem você pensa que está fazendo tudo isso senão o outro? 
Aquela tinha sido a minha oportunidade, jamais teria igual. 
E viveríamos felizes um com o outro, desde que ninguém soubesse, mas um dia botei tudo a perder. 
FOI num sábado — me lembro bem. Tinha chovido muito, e nós ficáramos em casa, brincando no quarto, distraídos — pois nos bastávamos em nossas brincadeiras, e nos completávamos, não precisando de mais ninguém para que a vida fosse uma fonte permanente de alegria e distração. Eu estava sentado no chão, colando umas figurinhas num álbum e Odnanref, de pé, junto ao armário (a figura dele, é lógico, não se refletia no espelho), tentando consertar para mim um automovinho de corda. Foi quando minha mãe me chamou para tomar o remédio (um fortifícante, pois achava que eu andava fraquinho). É claro que pedi ao Odnanref para ir em meu lugar, e ele foi de bom grado. 
Eu esquecera de trancar a porta do quarto e de súbito o Toninho entrou. Quando me viu sentado ali no chão, arregalou os olhos e quase caiu sentado  também: 
— Como? Se você passou por mim neste segundo ali no corredor? 
— Você está é maluco — tentei disfarçar, o pensamento girando rápido na cabeça, em busca de uma explicação, antes que fosse tarde demais. Naquele instante Odnanref, já tendo tomado o remédio que minha mãe lhe havia dado, voltou calmamente para o quarto. 
Toninho se virou e viu quando ele surgiu na porta. Ficou olhando para ele, depois para mim, novamente para ele, com os olhos deste tamanho. De repente soltou um berro e precipitou-se porta afora, atropelando o meu sósia e atirando-o ao chão. Dei um pulo e ajudei-o a se levantar. Depois tranquei a porta por dentro, ofegante, a ouvir a gritaria do Toninho lá fora, nos denunciando a todo mundo. 
— E agora? — perguntei, ansioso. 
— Não há nada a fazer — e ele me abraçou: — Estou descoberto, tenho de ir embora. 
— Às vezes ainda há jeito — disse eu, comovido, retribuindo o abraço: — Não me deixe sozinho, não vá embora, por favor. 
E procurava contê-lo. Mas ele se desembaraçava delicadamente de mim: 
— Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Até que fomos de sorte, fiquei tanto tempo...
Há pessoas que não conseguem senão alguns segundos. Outras não conseguem nunca...
Adeus, Fernando, meu irmão. Feche os olhos, por favor. 
— Adeus, Odnanref — murmurei, quase chorando. 
Fechei os olhos, como ele pedira. Quando tornei a abri-los, vi por entre as lágrimas a minha figura refletida no espelho, como sempre. Ele se fora para nunca mais. 
Ouvi que batiam na porta com insistência: 
— Fernando, abre aí! 
Era meu pai, minha mãe, o Gerson e até a Alzira, convocados pelo Toninho para testemunhar o fenômeno. Mal destranquei a fechadura, eles irromperam quarto adentro num tropel, como se fossem salvar o pai da forca: 
— Onde? Onde está o Fernando? 
— Estou aqui — respondi, admirado: — Não estão me vendo? 
— O outro Fernando! O outro Fernando! 
— Que outro? 
Olhavam ao redor, como se estivessem procurando alguém. Não esqueceram de espiar debaixo da cama ou dentro do armário. Depois se voltaram para o Toninho: 
— Acho que você está ficando maluco — disse o Gerson. 
— Nesta casa ultimamente andam acontecendo coisas muito malucas —   disse mamãe. 
— Sempre aconteceram — disse papai. 
E saíram todos. Mais tarde, ao jantar, quando comentaram o episódio, não deixaram de gracejar com o Toninho, já descrentes do que ele insistia em dizer que era a pura verdade: vira dois Fernandos, um dentro do quarto e o outro entrando, depois de tomar o remédio. 
— Acho que você é que anda precisando de remédio — comentei, mais calmo: — Está sofrendo da vista. 
De volta ao quarto, fui levar uma palavra de tranquilidade para o meu amigo no espelho: 
— Tudo bem — e sorri para ele. 
Mas ele se limitou a dizer ao mesmo tempo: 
— Tudo bem — e sorriu para mim.  



Fernando Sabino

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