O
MENINO E O HOMEM
QUANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d'água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios. O maior, porém, ainda estava por se manifestar.
NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que as poças d'água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando ideias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa confusão. Enquanto as que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o formigueiro, sem perceber o que acontecia à retaguarda, as ainda próximas do rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à margem, pintando uma forma qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela, com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:
— Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
— Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.
— Nove! — exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.
— Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
— Que cobra que nada! É a chuva — e comecei a rir também.
— Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?
— Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:
— Fernando! — berrou o papagaio, imitando mamãe: — Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito importante:
— Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?
— Quero — respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:
— Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:
— Quem é você? — perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
QUANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d'água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa cheia de mistérios. O maior, porém, ainda estava por se manifestar.
NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que as poças d'água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel, que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando ideias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa confusão. Enquanto as que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o formigueiro, sem perceber o que acontecia à retaguarda, as ainda próximas do rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à margem, pintando uma forma qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela, com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:
— Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
— Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.
— Nove! — exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.
— Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
— Que cobra que nada! É a chuva — e comecei a rir também.
— Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?
— Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:
— Fernando! — berrou o papagaio, imitando mamãe: — Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito importante:
— Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?
— Quero — respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:
— Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:
— Quem é você? — perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
Fernando Sabino
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