O Menino no Espelho - Capítulo VI






                    O VALENTÃO DA MINHA ESCOLA 

DEPOIS disso tive de enfrentar outra espécie de perigo: o de levar uma surra do valentão da minha escola. 
O nome dele eu não me lembro, mas todo mundo na classe o chamava de Birica. Era pelo menos uns dois anos mais velho que o resto da turma. 
A verdade é que os colegas tinham medo dele. Birica falava e os outros baixavam as orelhas.
Eu mais do que todos, pois era dos menores. 
Vai um dia o Birica resolve implicar comigo. Ele e outro menino, conhecido como Jacaré. Não que o Jacaré fosse forte feito o Birica: era mais ou menos do meu tamanho. Tinha o queixo para a frente, de aparar goteira, e quando abria a boca parecia um jacaré — daí o apelido.
Deste eu me lembro o nome: Sinfrônio. Por isso mesmo ele preferia ser chamado de Jacaré. 
Pois o Jacaré, de quem ninguém gostava (tinha fama de ladrão, furtava tudo que a gente esquecesse na carteira), andava sempre adulando o Birica, e acabou querendo bancar também o valentão. Do Jacaré ninguém tinha medo, mas o Birica havia passado a protegê-lo, e ai de quem se metesse com ele! Um dia o Tininho, só porque deu uma sardinha no Jacaré, levou um tostão do Birica que deu com ele na enfermaria, ficou sem poder andar direito uma semana.
Mas não contou para a diretora quem o tinha machucado. Era essa a lei entre nós: ninguém entregava ninguém. E além do mais aquilo era coisa à toa, vivíamos dando sardinha, tostão, cacholeta e coque uns nos outros. 
Para quem não sabe: sardinha é uma chicotada de raspão, com o dedo indicador, em quem quer que ouse arrebitar o traseiro. Costuma doer de verdade, quando pega de jeito. Tostão é uma joelhada de lado na coxa da vítima, também dói muito. Cacholeta é uma pancada na cabeça de um infeliz, com as mãos presas uma na outra, depois de soprar entre elas como a enchê-las de vento. Costuma até tontear. O coque, ou cascudo, é a mesma coisa, só que com uma só mão. 
Havia outras brincadeiras perversas ou mesmo perigosas, como a cama de gato: enquanto um ficava de quatro atrás do distraído, outro o empurrava pela   frente, fazendo com que tropeçasse e caísse estatelado de costas no chão. Houve mais de uma cabeça quebrada em consequência dessa gracinha. 
Numa das brincadeiras, nunca cheguei a saber onde estava a graça: um dos meninos estendia firmemente dois dedos da mão direita (o fura-bolos e o pai-de-todos), para que outro menino, com os mesmos dedos, desferisse neles uma pancada com toda força; passava então a ser a vez do outro, que fazia o mesmo; ao fim de alguns minutos dessa distração idiota, estavam ambos com os dedos vermelhos e inchados, latejando de dor. Para quê? Para nada. 
Algumas eram brincadeiras inofensivas, como a gata parida: dois meninos, sentados em cada extremidade do banco, iam apertando os do meio até que não houvesse mais espaço para
ninguém ficar sentado entre eles e, um a um, fossem espirrando para fora. 
De outras brincadeiras, a vítima era a própria professora. Como dona Risoleta, por exemplo, que dava aula de religião. 
MAGRICELA como a Olívia Palito, mulher do Popeye, parecia um galho seco dentro do vestido escuro. Era antipática e ranzinza. Usava óculos de lentes grossas: não enxergava direito, vivia confundindo um aluno com outro. 
A aula de religião não contava ponto nem influía na nossa média, mas a diretora nos obrigava a frequentar. 
Um dia apareceu uma barata na sala de aula. Descobrimos então que dona Risoleta tinha verdadeiro horror de baratas: soltou um grito, apontou a bichinha com o dedo trêmulo e subiu na cadeira, pedindo que matássemos. Era uma barata grande, daquelas cascudas, de salto alto 
A classe inteira se mobilizou para matá-la. Foi aquele alvoroço: empurrões, cotoveladas, pontapés, risos e gritaria, todos querendo atingi-la primeiro. E a coitada feito barata tonta, escapando por entre nossas violentas patadas no chão. Até que, de repente, tive a sorte de dar com ela passando a correr entre meus pés — esmigalhei-a numa pisada só. 
Fui aclamado como herói, vejam só: herói por ter matado uma barata. Até dona Risoleta me agradeceu, trêmula, descendo da cadeira e me dando um beijo na testa. Esse beijo a turma não me perdoou, durante muito tempo fui vítima da maior gozação: diziam que dona Risoleta estava querendo me namorar. 
Deste episódio nasceu uma brincadeira que passamos a fazer em toda aula de religião, duas vezes por semana. Alguém trazia uma barata viva dentro de uma caixa de fósforos vazia, para soltar na saia de aula entre as carteiras, até que um aluno denunciasse a sua presença. Quando não era a dona Risoleta que soltava um gritinho: 
— Uma barata!  
  Às vezes mais de um menino trazia de casa para soltar na sala a sua barata dentro da caixa de fósforos ou de uma latinha. Tínhamos de combinar antes, pois se aparecessem muitas de uma vez, dona Risoleta acabava desconfiando. 
Um dia ela foi reclamar providências da diretora, dizendo que o prédio era velho, estava precisando de uma limpeza em regra, vivia cheio de baratas. Naquele tempo não havia
dedetização, de modo que a diretora não tomou providência nenhuma, nunca tinha visto barata na escola, aquilo eram fricotes da dona Risoleta. 
E a coisa ficou por isso mesmo, de vez em quando aparecendo uma baratinha, para alegrar a aula de religião. Houve uma que subiu pela perna da professora e foi se esconder debaixo da sua saia. A mulher deu um pulo de três metros de altura, se sacudindo toda, aos berros, como se estivesse possuída do demônio, por pouco não se atirou pela janela. 
Até que o Dico um dia esqueceu na carteira uma caixa de fósforos com a barata dentro. Sem saber para que diabo aquele aluno havia de ter trazido fósforos de casa, se todos nós éramos crianças, não fumávamos, dona Risoleta, curiosa, abriu a caixa. A barata saltou em sua cara num voo aflito, largando pedaços de asa no ar, e se refugiou nos seus cabelos. A coitada só faltou desmaiar de susto. Saiu correndo feito doida com barata e tudo e foi nos denunciar à diretora. 
O Dico acabou suspenso por uma semana, como responsável por todas as baratas que já tinham aparecido. Com isso, ficou sob ameaça de perder o ano, por falta de frequência. 
Em solidariedade a ele, resolvemos fazer greve, matando as aulas de religião. 
Foi quando alguém teve ideia melhor para nos vingarmos: 
— Vamos trazer para a sala outra coisa. 
— Uma lagartixa — sugeriu um. 
— Um rato — sugeriu outro. 
— Um sapo — sugeriu um terceiro. 
Concluímos que lagartixa não fazia mal a ninguém, era capaz de não assustar dona Risoleta. A menos que jogássemos uma pelo pescoço dela abaixo, por dentro do vestido — e todos riam, imaginando a cena. Durante o recreio as conversas e conspirações fervilhavam. Como e onde conseguir apanhar um rato vivo e trazê-lo para a escola sem que ninguém visse? Acabamos preferindo a ideia do sapo, de que estava cheio o córrego do Leitão, ali perto da escola. E no próprio lago da Praça da Liberdade, onde eu morava, tinha vários sapinhos, a questão era conseguir pegar um. 
Mas a meninada era ativa: no dia seguinte mesmo o Tição, um crioulinho de pele brilhante de tão preta, trouxe, presa com um barbante, uma perereca   verde que era uma beleza. Todo mundo se juntou, querendo ver: 
— Mostra ela para nós, Tição. 
— Onde é que você pegou? 
O negrinho ria, os dentes muito brancos: 
— Lá perto de casa tem uma porção. 
E punha a perereca na palma da mão, para que todos vissem. Ela ficava ali, encolhida, inchando e desinchando a barriga, olhos arregalados. De repente, como se fosse de mola, dava
um salto no ar em direção à cara de um. Todos se espalhavam, assustados: 
— Cuidado, que se ela mija no seu olho você fica cego. 
— É só sapo que faz isso. Perereca não mija não. 
Se não fosse o Tição conter com mão firme o barbante que a prendia pela cintura, ninguém segurava a perereca. E ele a guardava no bolso do uniforme, onde ela ficava se mexendo. 
A ideia era botá-la dentro da bolsa que dona Risoleta deixava em cima da mesa, enquanto dava aula. Num momento em que ela estava de costas, escrevendo a lição no quadro-negro, o próprio Tição realizou a façanha: foi até lá com passo macio de gato, abriu a bolsa, desatou o barbante, jogou a perereca dentro e tornou a fechar, voltando de mansinho para a sua
carteira. Na vista de todo mundo, menos da professora: tivemos de fazer força para conter o riso. 
Dona Risoleta não abriu mais a bolsa até o fim da aula. Para não ficarmos sem saber o que aconteceria, confiamos a dois colegas a missão de segui-la de maneira disfarçada. 
Não precisaram ir muito longe. No dia seguinte ouvíamos deles, na hora do recreio, entre gargalhadas, o que havia acontecido. No bonde a caminho de casa viram quando ela abriu a bolsa para tirar o dinheiro e pagar ao condutor. O que saiu foi uma perereca, a pular adoidada sobre a cabeça dos passageiros. Um pandemônio: alguns até saltaram do bonde andando, a começar pelo próprio condutor. 
Naquele mesmo dia dona Risoleta comunicou à diretora que não daria mais aula para nós. 
E HAVIA a aula de música. Era também facultativa, mas íamos todos de bom grado, por ser muito divertida, pela bagunça que fazíamos. Quem ensinava era o seu Asdrúbal, o único professor homem. Tinha uma careca brilhante, uma cara de lua e um sorriso bom. A voz era de barítono. Constava que cantava ópera, já se havia apresentado no Teatro Municipal. Com os bracinhos curtos, balançando o corpo roliço de João-Teimoso, regia o canto da molecada:  


Viva o sol 
Do céu de nossa terra 
Vem surgindo 
Atrás da linda serra. 

Dividia a turma em grupos, conforme o tom de voz, e cada grupo começava a cantar num momento diferente, para compor um coro de várias vozes desencontradas. O que terminava sempre em algazarra, pois fazíamos questão, para desespero dele, de cantar tudo errado, entrando fora de hora e de compasso. 
Seu Asdrúbal se sentava no piano, de costas para nós, tentando impor alguma afinação ao nosso coro de miados de gato. O aluno mais perto da porta se levantava, sorrateiro, e
escapulia, fechando-a atrás de si, enquanto outro tomava o seu lugar. O professor se voltava para fiscalizar a turma, que fingia levar a sério a cantoria. E não dava por falta do fujão, e de outro, e mais outro, e outro ainda... À medida que olhava, ia ficando intrigado, estranhando alguma coisa, sem chegar a perceber que o número de alunos era cada vez menor. Até que, dos trinta, restavam apenas uns doze, e onze, dez... Nem assim o homem, distraído lá com a sua música, dava pela coisa. Até o dia em que sobraram apenas seis e tão logo seu Asdrúbal se voltou para o piano, escaparam todos de uma vez, em debandada silenciosa, porta afora, deixando a sala vazia. 
Havia também uma brincadeira, que era botar rabo nas professoras.  
 Brincadeira perigosa, que às vezes acabava mal. Era um rabo de papel, podia ser de tiras de jornal ou mesmo de pano, como os dos papagaios que empinávamos. Bastava amarrá-lo num alfinete torto como um anzol e dependurá-lo com delicadeza na parte de trás da saia, quando a professora estivesse de costas. 
Um dia o menino escolhido para realizar a proeza foi um caolhinho de nome Noraldino, que ficava uma fera quando o chamávamos de Zarolho. Pois o Zarolho, talvez por não enxergar direito, deu foi uma boa alfinetada no traseiro da dona Zelma, professora de desenho, uma gorducha, a quem chamávamos de dona Zebra, por ser muito brava e viver dando reguada na mão da gente quando desenhávamos. Dona Zebra soltou um relincho mesmo de zebra e se
virou, desferindo um tapa na cara do Zarolho, que no impulso saiu da sala para fora catando cavaco e nunca mais voltou, pois no mesmo dia foi expulso da escola. 
DE TAIS brincadeiras o Birica não participava. Dizia que eram coisas de criança, ele tinha mais o que fazer. Na verdade a sua preocupação era com o que havia de malicioso ou imoral na escola. Não vou dizer que fosse dele tudo o que aparecia escrito ou desenhado na parede das privadas, mas era quem procurava iniciar os menores na prática daquilo que os desenhos ou escritos representavam. 
Até que um dia resolveu implicar comigo. 
Tínhamos um colega, o Tininho — acho que já falei nele. O tal que levou o tostão do Birica. O Tininho, o Dico (que foi suspenso por causa da barata) e eu éramos muito amigos. Todo dia voltávamos juntos da escola e nos separávamos na esquina da praça, no alto da Avenida João Pinheiro. Tininho ia para um lado, eu para outro e o Dico seguia em frente. Na hora que cada um tomava seu rumo, nossa despedida era muito tumultuada, pois estávamos jogando "dorme
com essa", ou seja, um tapinha, onde quer que acertasse, que cada um se empenhava em ser o último a dar: 
— Dorme com essa! — dizia um, encostando a mão no outro. 
— Dorme com essa! — reagia o outro, devolvendo o gesto. 
Ganhava quem fosse mais rápido, como no duelo entre o mocinho e o bandido. E era aquela correria rua afora, um atrás do outro, para revidar. 
Sendo três, a situação se complicava: às vezes o perseguidor de um passava a ser perseguido pelo outro, e este pelo primeiro: ficávamos horas nessa brincadeira, e mesmo chegando tarde em casa e ganhando pito, não desistíamos: era uma questão de honra não "dormir com essa". 
Naquele dia, o Tininho disse para o Dico, na hora do recreio, se vangloriando: 
— Você ontem dormiu com essa. 
— Hoje quem vai dormir é você — retrucou o Dico.  
O Jacaré, que ouvia a conversa, meteu o bedelho sem ser chamado, perguntando com ar de deboche: 
— Que conversa de fresco é essa? 
O Tininho, que não gostava dele, como aliás todo mundo, ficou ofendido por ter sido chamado de fresco e respondeu mandando o nome da mãe. O Jacaré avançou contra ele. Dico logo saltou entre os dois para impedir: 
— Covardia, ele é menor do que você. 
— Xingou minha mãe. 
— Então bate em mim primeiro. 
— Vem no braço se você ê homem — e Jacaré olhou ao redor, já procurando o Birica. 
Coloquei-me entre os dois e cuspi no chão, como mandava o código: 
— Quem for homem pisa aqui primeiro. Dico foi o primeiro a pisar no cuspe. Mas o  Tininho, enraivecido, não queria saber daquilo: 
— Deixa ele comigo, Dico! Eu quebro a cara dele! — e, pequenino diante do outro, ainda assim tentava acertar com um soco a queixada do Jacaré. O que me deixou na maior admiração, pois o Tininho, bem menor do que eu, demonstrava muito mais coragem: no fundo, eu tinha feito
corpo mole e deixado o Dico passar à frente para defendê-lo, pois não estava com a menor vontade de brigar com o Jacaré. 
Foi quando se ouviu uma voz atrás de nós: 
— Que é que está acontecendo aí? 
Era o Birica, abrindo caminho entre a meninada que se juntara ao redor, para apreciar a briga.
Todos, reverentes, o deixaram se aproximar. Mãos na cintura, ele se colocou na minha frente: 
— Provocando briga aí, seu covarde? 
Mais tarde eu não saberia explicar como pôde acontecer o que se passou então. Violência não era comigo. Preferia resolver as coisas com calma, pois quando a gente perde a cabeça acaba fazendo bobagem e depois se arrepende. Se me vi estimulando o Dico a brigar com o Jacaré, foi só porque ele estava defendendo o Tininho que, embora valente e brigão, era muito mais fraco, ia levar uma surra daquelas. Não fiz o mesmo que o Dico porque na verdade eu não conseguia sentir raiva do Jacaré a ponto de brigar, como não sentia de ninguém. Quando alguém fazia alguma coisa contra mim, antes de ficar com raiva eu pensava que ninguém pode ser tão ruim a ponto de desejar mal aos outros. Se aconteceu é porque ele perdeu a cabeça, ou então porque não entende direito as coisas, é burro ou ignorante — se eu fosse assim
também, em seu lugar faria o mesmo. 
Só que, por causa disso, não acho que possam me chamar de covarde.  
Pois eu, que seria capaz de tudo para evitar uma briga com o Jacaré, deixando de imitar o Dico e dando aos outros e até a mim mesmo a impressão de estar com medo, no instante em que ouvi aquela palavra, não sei o que me deu: como se outra pessoa é que tivesse reagido e eu vendo tudo do lado de fora. 
O que vi foi meu braço se erguer, como impulsionado por uma mola, e desferir violenta bofetada na cara do Birica. 
O pasmo ao redor foi total. Ninguém podia acreditar no que tinha visto. Apanhados de surpresa, todos agora esperavam, num silêncio respeitoso, o que estava para acontecer. 
Birica chegou a cambalear, levando a mão ao rosto, que logo ficou vermelho, com a marca dos meus dedos. Eu tinha batido mesmo com força, uma força maior do que sabia ter. Vi que ele me olhava, atônito, um olhar abobalhado de quem não sabe o que pensar. Instintivamente protegi o rosto com os punhos fechados, me preparando para a briga e esperando a reação dele, que seria de me massacrar. Me preparei até para morrer, quando ele, enorme diante de mim, desfechasse o primeiro soco. Em vez disso, o que aconteceu não podia ser mais surpreendente para mim e para todo mundo. Ele fez um gesto vago com a mão no ar, e as palavras saíram gaguejadas de sua boca: 
— Não precisa se ofender, Fernando. Eu falei brincando... Me desculpe. 
Naquele instante, por pouco o meu queixo não caiu de tanto espanto, não ficou maior do que o do próprio Jacaré, que assistia a tudo de boca aberta ali ao lado: o Birica me pediu desculpa! 
Afinal entendi o que havia acontecido: Birica, o valentão, aquele com quem ninguém podia, e que me chamara de covarde, é que estava acovardado! Como a desejar fazer as pazes, ele agora esboçava um gesto de quem queria mas não ousava botar o braço no meu ombro: 
— Eu falei brincando — repetiu, e tentou sorrir. 
Daquele dia em diante, não passei a ser o valentão da escola, como seria de esperar — mas ninguém mais respeitou a valentia do Birica.  


Fernando Sabino

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