O Menino no Espelho - Capítulo V





                             UMA AVENTURA NA SELVA 

VOLTEI então a me empolgar pelas aventuras de Tarzan ou pelas desventuras de Robinson Crusoé. Tinha vontade de imitá-los. Era pensando em Tarzan que eu subia na mangueira, dava o meu grito da selva e saltava de galho em galho, chegando mesmo a passar, dependurado numa corda como se fosse um cipó, para a mangueira do vizinho, do outro lado do muro. E como se fosse Robinson Crusoé na sua ilha deserta é que resolvi construir uma cabana no fundo do quintal. 
Primeiro finquei quatro estacas de bambu no chão, formando um quadrado. Depois ergui as paredes, aproveitando as tábuas de uns caixotes vazios que estavam havia tempos debaixo da escada da cozinha, sem nenhuma serventia. Para isso, usei o martelo, o serrote e outras ferramentas de meu pai, que eu já sabia manejar com alguma habilidade. Aproveitava, é lógico, as horas em que ele não estava em casa, pois papai não gostava que usassem as suas
ferramentas. Dizia que a gente depois largava tudo espalhado por aí. 
O telhado era feito de uns galhos cruzados, sustentando pedaços de lata de querosene e tampas de latas de biscoito Aymoré. A porta e a janela, também de madeira, tinham
dobradiças feitas de pedaços de couro de um sapato velho e se fechavam por dentro com uma tramela: um pedacinho de pau que girava, preso por um prego. 
Aos poucos foi surgindo a mobília da minha nova morada: uma mesa feita de tábua e quatro pedaços de cabo de vassoura, um banquinho que era outra tábua em cima de dois tijolos, e a cama, que era um saco de aniagem cheio de folhas secas em cima de um jirau improvisado.
Algumas prateleiras de papelão e cabides feitos de pregos completavam a arrumação. 
Cuidei também de levar para a cabana uma boa provisão de alimentos furtados da despensa: frutas, latas de sardinha, salame, queijo — tudo mais que pudesse comer com auxílio do meu canivetinho, sem precisar de cozinhar. 
E passava horas e horas ali dentro, sozinho na minha ilha deserta. Até parecia que ninguém mais sabia da minha existência. Às vezes minha mãe me procurava por tudo quanto era canto da casa, o, não me encontrando mandava a  Alzira me buscar na cabana: 
— Deve estar metido lá dentro, esse menino. A cozinheira batia na porta com uma força que ameaçava jogar a cabana no chão, mas eu não abria: ficava quietinho, sem fazer barulho, esperando que ela acabasse desistindo. 
Uma noite, enfim, resolvi dormir ali. Pedir que meus pais permitissem, nem pensar: mamãe vivia dizendo, assim que anoitecia: 
— Vem pra dentro, menino, olha o sereno! 
E papai não se metia; quem mandava nessas coisas era ela. 
Para facilitar, pensei em confiar meu plano ao Toninho, mas achei que ele podia querer também dormir na cabana, e ali dentro mal cabia um, quanto mais dois. Então esperei que
todos na casa adormecessem, e saí sorrateiro do quarto em direção ao quintal, levando o travesseiro e o cobertor. 
Não tive sorte: naquela noite caiu um temporal, com raios e trovoadas. A água da chuva inundou a cabana, a ventania arrancou pedaços do telhado. Encolhido num canto, molhado
até os ossos, tive de esperar o dia clarear, debaixo daquele aguaceiro todo. Acabei pegando uma gripe, por pouco não vira pneumonia. E recebi um castigo bem merecido: fiquei sem sobremesa uma semana. 
Meu pai, curioso, no dia seguinte foi ao quintal apreciar a cabana. Elogiou o meu trabalho, mas fez vários reparos: isso aqui você não pregou direito; é lógico que tinha de chover dentro, o telhado não tem inclinação; devia ter cavado um rego ao redor, para a água não entrar por baixo da parede. 
— Você tem jeito. Mas precisa de aprender umas coisas. 
E disse para minha mãe, na hora do almoço: 
— Acho que o escotismo é que vai ser bom para esse menino. 
TONINHO já era escoteiro, mas eu ainda não tinha idade senão para ser lobinho. Ainda assim, meu irmão me levou para a associação e me alistou. 
Em pouco tempo, passei a levar mais que a sério o escotismo. Não tanto pela parte moral — embora não deixasse de ser interessante amar a Deus sobre todas as coisas, ter uma só
palavra, fazer uma boa ação todos os dias, ser limpo de corpo e alma, amar os animais e as plantas, respeitar o bem alheio, ser cortês e leal, e outras obrigações dos mandamentos do
escoteiro, que a gente jurava cumprir. O que me atraía mesmo era a parte prática e as distrações: transmitir mensagem à distância pelo código Morse, com o auxílio de um apito ou de uma lanterna (logo consegui decorar o alfabeto), ou por semáforo, com duas bandeiras, como fazem os marinheiros; aprender a dar várias espécies diferentes de nós; acender uma fogueira com apenas um pau de fósforo ou fazer fogo sem fósforo algum; armar uma barraca; orientar-me pelas estrelas; tocar tambor;  seguir uma pista em pleno mato — e mil outras coisas próprias dos índios e dos exploradores do oeste. 
Duas vezes por semana lá ia eu para a reunião na sede da associação, todo orgulhoso no meu uniforme de lobinho. 
E chegou enfim o dia de realizar o meu grande sonho: participar de um acampamento. 
Éramos uns trinta, e eu o único lobinho. Toninho também foi. Ele não devia ter nem doze anos, mas já era monitor da patrulha do Lobo, havia passado na Primeira Classe e conquistado várias especialidades, cujos distintivos ostentava na manga arregaçada da blusa caqui. Nem por isso parecia pretensioso ou arrogante. Pelo contrário: procurava ser humilde e camarada, um grande companheiro dos demais escoteiros, mesmo os menores como eu. Não era só por ser
meu irmão: eu o considerava o meu melhor amigo e ele acabou se tornando para mim uma espécie de instrutor. Era quem me ensinava as coisas. Com ele é que aprendi quase tudo do escotismo, inclusive sobre acampamentos. Agora ia pôr em prática o que aprendera. 
Fomos de trem, numa enorme algazarra, entre cantorias e brincadeiras. Descemos em Itabirito, de onde seguimos a pé até o local onde íamos acampar, fora da cidade e perto de
uma floresta.
Enquanto os demais escoteiros cumpriam cada um sua missão armando o acampamento, a patrulha do Lobo, chefiada pelo Toninho, foi encarregada de catar galhos secos na mata, que servissem de lenha para cozinhar e para o Fogo do Conselho, depois do jantar. Fui com os oito escoteiros, pois ficara mais ou menos agregado a eles, adotado por aquela patrulha como uma espécie de mascote. 
Usando suas machadinhas e facões, os escoteiros se espalharam entre as árvores, cortando galhos aqui e ali. Também eu levava, com orgulho, dependurada ao cinto, a minha faca de campanha. Mas não precisei de usá-la, pois, de acordo com as instruções do comandante da patrulha, minha missão se limitava a recolher do chão todo graveto que encontrasse.   Distraído com a tarefa, não reparei que me distanciava dos outros, embrenhando-me cada vez mais no meio do mato. Quando percebi que já não mais os via, nem mesmo ouvia suas vozes, procurei regressar, mas não sabia por onde, tantas eram as voltas que havia dado. O mato era
denso ao redor, impedindo que eu visse qualquer coisa à distância de uns poucos metros.
Mesmo a luz do dia mal chegava onde eu tinha ido parar, impedida pela copa das árvores que se fechavam como um telhado sobre minha cabeça. E o pior é que já começava a anoitecer. 
Procurei prestar atenção, aguçando os ouvidos, para ver se escutava alguma coisa. Realmente deu para captar, ao longe, uns farrapos de conversas e risadas cada vez mais fracas, à medida que se afastavam, eu não conseguia distinguir em que direção. Gritei, gritei, mas não deviam ter me ouvido, pois fiquei esperando um tempão e ninguém apareceu. Senti vontade de chorar, mas resisti: um escoteiro não chora. 
Dava para perceber em que lado o sol se afundava no horizonte, pois seus últimos raios conseguiam varar a parede de árvores, deixando no ar uma cortina de luz. Eu sabia me
orientar pelo sol. Bastava virar a esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às costas o sul e â direita o leste. Mas de que adiantava? Eu não sabia se o nosso acampamento estava na direção do norte, do sul, do leste ou do oeste. Distraído em olhar o chão à procura de gravetos, eu não havia prestado atenção a nada, e muito menos por onde ia. O que era imperdoável num escoteiro, que deve estar sempre alerta. 
Agora eu descobria que estava completamente perdido, e em breve seria noite. Sabia que tinha ido parar bem longe do acampamento. Devia ter me afastado dos outros uma longa
distância, andando sem rumo pela floresta. Era inútil tentar voltar. Eu ia acabar me perdendo de vez, e quando viessem à minha procura, jamais me achariam. 
DECIDI não entrar em pânico e encarar com bom humor a minha situação: o escoteiro é alegre e sorri nas dificuldades. Quando afinal eu voltasse ao acampamento, possivelmente daríamos boas risadas pelo que havia acontecido. Eu podia até inventar que me escondera de brincadeira, para passar um susto nos companheiros. A verdade é que temia receber algum castigo, pois deixara de cumprir a instrução que havia recebido, de não me afastar muito dos meus companheiros. Só que eu não poderia mentir: o escoteiro tem uma só palavra, sua honra vale mais que a própria vida. 
E era a minha própria vida que estava em jogo: pelo jeito, eu teria de passar a noite em plena mata, cercado de perigo por todos os lados.  
 Procurei fazer um levantamento dos recursos com que eu contava para sobreviver. Havia deixado no acampamento a mochila com mudas de roupa, cobertor, escova de dentes, e tudo mais. Mas trazia comigo, dependuradas no cinto ou dentro dos bolsos, várias peças do equipamento de um escoteiro, e que me seriam valiosas na situação em que me encontrava: a faca metida na bainha de couro; o rolo de corda; o canivete (não o vermelhinho, mas outro, dos grandes, marca Solingem, que meu pai me havia dado no Natal, com uma porção de lâminas, uma pequena lente, serras e até um garfo e uma colher); o cantil cheio d'água; a
marmita portátil; a caixinha de primeiros socorros, cruz vermelha na tampa, contendo algodão, esparadrapo, um vidrinho de iodo, outro de álcool e uns comprimidos para dor de barriga e resfriado; uma cadernetinha de notas e um lápis. Por azar meu, só não trouxera o apito, que agora serviria para chamar facilmente a atenção dos meus companheiros, com SOS em Morse. 
Encontrei também no bolso um tablete de chocolate Gardano e um pacote de pastilhas de hortelã que havia comprado na estação de Belo Horizonte, antes de tomar o trem. Como
estivesse sentindo fome, comi um pedacinho do chocolate e chupei uma pastilha de sobremesa. Era preciso tomar cuidado, economizar água e aquela ração de alimento, como
fazem os náufragos. Aquilo talvez tivesse de durar muito tempo, até que eu regressasse à civilização. 
De repente ouvi um ruído a poucos passos. 
Subi com a rapidez de um esquilo ao galho mais alto de uma árvore, e só quando me senti a salvo, enganchado numa forquilha, pude olhar para baixo e ver o que me havia assustado: um bicho esquisito, todo riscado nas costas, de rabo curto e focinho comprido, que foi passando  calmamente e logo desapareceu. Concluí que devia ser um filhote de anta, ou tapir, que já  tinha aprendido a reconhecer: o Tapir de Prata era a mais alta condecoração que um escoteiro
podia receber. 
Achei prudente continuar ali em cima mesmo, onde os perigos eram menores: só as cobras e as onças, entre os animais ferozes, eram capazes de subir em árvores. Ao que eu soubesse, naquela mata não devia haver nem uma coisa nem outra, porque do contrário o local do acampamento não teria sido escolhido tão perto dela. 
Para não cair durante o sono, amarrei com a cordinha o meu corpo pela cintura no tronco da árvore, fazendo para isto uma volta-de-fiel. Vi num galho de outra árvore os olhos acesos de
uma coruja me observando. Se tinha coisa no mundo de que eu não gostava era coruja. Para mim era bicho de mau agouro. Mas resolvi não acreditar em azar dali por diante: se a coruja não estivesse gostando da presença daquele estranho ali, azar dela: os incomodados que se retirem. 
Em pouco tempo passei a escutar uma verdadeira orquestra dos mais  estranhos sons: uivos, assobios, latidos e até mesmo gemidos. A própria coruja parecia assustada, e soltava um pio sinistro de arrepiar de medo. A certa altura varou a escuridão uma espécie de gargalhada que fez meu corpo gelar. Cheguei a fazer o nome-do-padre, pedindo a Deus que me descobrissem o mais depressa possível. E comecei a assobiar tudo quanto é música que eu conhecia, para espantar o medo. 
Mesmo com aquela zoeira toda nos meus ouvidos, fui aos poucos sendo dominado pelo cansaço e acabei adormecendo. 
QUANDO abri os olhos, havia clareado. O sol subia no horizonte. Assim, á luz do dia, a mata não parecia tão assustadora. Pelo contrário: tudo era tranquilo e sem mistério. Vi a um palmo do meu nariz, pousado no galho onde eu descansava a cabeça, um passarinho preto de barriga amarela a me olhar com curiosidade, a cabecinha torta para um lado. Depois ele me virou as costas e foi pulando pelo galho afora até a ponta, de onde levantou voo. 
Eu ouvia na mata uma cantoria doida de passarinhos, formando um só ruído, contínuo e ensurdecedor. Desamarrei-me da árvore, enrolei a corda, e depois de dependurá-la no cinto, desci com dificuldade até o chão. A posição forçada de dormir abraçado ao tronco havia deixado meu corpo doído como se eu tivesse levado uma surra. 
Dei alguns passos para desenferrujar as pernas. Ao olhar para o chão, descobri no meio do capim um ninho com seis ovinhos. Deviam ser de codorna. Guardei com cuidado todos eles nos bolsos da blusa, três de cada lado: ainda dariam um bom almoço. 
Estava morto de fome e de sede. Molhei o rosto para espantar o resto de sono, e tomei um pouquinho de água, que estava com um gosto meio choco, como toda água de cantil. Mas me
matou a sede. Comi mais um pedacinho do   chocolate, que havia amolecido com o calor do meu corpo: amassado, colava-se no papel prateado, lambuzando-me os dedos. Mas me matou a fome. E chupei uma pastilha de hortelã, enquanto pensava o que faria agora. 
Concluí que era inútil ficar ali à espera. Acabaria mais velho que Robinson Crusoé na sua ilha, antes que me encontrassem. Resolvi ir andando, e escolhi a direção do sol, porque, me lembrava agora, tínhamos entrado na mata dando as costas para ele. Mais tarde iria descobrir que era justamente o contrário que eu deveria fazer, pois estava me afastando cada vez mais do acampamento: tinha entrado na mata de tarde, e agora era de manhã, o sol estava do outro lado. 
Para poder avançar, eu precisava às vezes abrir caminho no mato com a faca: arbustos, cipós e galhos das árvores se entrelaçavam, formando uma verdadeira rede. Mas fui conseguindo seguir em frente, até chegar a uma pequena clareira, onde me sentei numa pedra para descansar. 
Enxuguei o suor do rosto, tomei mais um gole d'água, e estava pensando se comia ou não comia outro pedacinho do chocolate, quando ouvi uma espécie de assobio bem baixinho, perto de mim. Olhei para o lado e vi, meio erguida a dois palmos de minha cara, a cabeça de uma cobra enorme, a linguinha entrando e saindo, pronta para dar o bote. 
Fiquei paralisado de pavor, a olhá-la também. Mas não perdi a calma: tirei devagarinho a corda da cintura, armei um laço fazendo um lais-de-guia e segurei-a no ar com as duas mãos,
esperando o bote. Assim que a cobra avançou a cabeça, fui mais rápido: joguei o laço sobre ela e apertei com toda força. Depois fiquei de pé e comecei a rodar a corda com violência sobre a cabeça, a cobra de mais de um metro dependurada girando no ar, já estrangulada, a boca aberta... Atirei-a no chão e acabei de matá-la, esmigalhando a cabeça com a pedra onde minutos antes estava sentado. Enxuguei o suor do rosto, suspirando aliviado, me deu até vontade de soltar o grito de vitória do Tarzan. 
Depois de tornar a enrolar a corda e dependurá-la na cintura, fui-me embora dali. 
O CAMINHO aberto a facão pela mata poderia indicar aos meus companheiros por onde eu tinha seguido. Mas dali por diante, como a vegetação já não era tão cerrada, fui deixando os sinais de pista de vinte em vinte passos. Uma seta riscada no chão ou na casca de uma árvore, ou feita de pedrinhas e gravetos, indicando o caminho a seguir. Um x, indicando o caminho a evitar. Se saltava um pedregulho, um buraco ou um tronco caído, desenhava uma seta atrás de outra com dois risquinhos entre elas, o que queria dizer: salte o obstáculo. O sinal de perigo, que era um triângulo, não tinha como deixar: havia perigo por todo lado. E o corpo da cobra
morta na clareira, que eles haviam de encontrar, era prova disso. 
Quando vi por entre as árvores que o sol estava no alto do céu, decidi parar. Meio-dia — era hora do almoço. Me lembrei dos ovos de codorna, verifiquei com pena que um deles havia
quebrado: meus dedos saíram do bolso da blusa lambuzados de gema e clara. Mas restavam cinco, e resolvi cozinhá-los. 
Para isso, armei uma fogueirinha de gravetos, entre duas pedras grandes, pus um pouco de água do cantil na tampa da marmita com os ovinhos dentro e apoiei-a nas pedras. Depois fiquei longos minutos a tentar fazer fogo na ponta de um pedacinho de papel da minha caderneta, concentrando sobre ele o calor de um raio de sol através da lente do meu canivete.
Pude enfim ver sair do papel uma fumacinha, depois uma chama, que enfiei debaixo dos gravetos, e logo um foguinho fazia ferver a água na tampa da marmita, cozinhando o meu
almoço. Descasquei com cuidado os ovinhos e comi um por um. Estavam deliciosos. Só não comi a casca porque enganei a fome com o resto do chocolate. Como já estivesse  praticamente no fim, tive de lamber o papel prateado. Mais uma pastilha de hortelã, e estava finda a minha refeição. 
Antes de apagar o fogo, tive uma ideia que logo pus em prática. Joguei nas chamas algumas folhas verdes, que começaram a fazer subir ao céu um denso rolo de fumaça. Então tirei a blusa, cobrindo com ela a fumaça e deixando escapar um pouquinho de cada vez, como fazem os índios, de maneira que subissem no ar três pontos, três traços e três pontos, que era o sinal de SOS em código Morse. Lá do acampamento os escoteiros certamente veriam no céu o meu
pedido de socorro. Depois apaguei o fogo e segui em frente. 
O chocolate me deu sede e descobri, desolado, que não tinha mais que um gole de água no cantil. Outra imperdoável distração para um escoteiro: havia apagado o fogo com a água da tampa da marmita, em vez de despejá-la de volta no cantil. Tinha pensado que ela não serviria para beber, porque estava muito quente... Nunca me senti tão burro, ao descobrir a bobagem que havia feito. 
Mas Deus estava mesmo me protegendo: a mata foi rareando à medida que eu avançava, e terminou num rio largo e caudaloso. Água é que não ia mais me faltar. E na outra margem avistei um milharal cheio de espigas... Ali estava o meu jantar! Já tinha pensado em me valer de raízes e frutos silvestres para matar a fome, mas temia que fossem venenosos. 
Era preciso atravessar aquele rio, e só mesmo a nado. 
TIREI toda a roupa, aproveitando para tomar um banho refrescante, e me distraí catando todos os carrapatos que encontrei no corpo. Depois fiz com roupas, sapatos e tudo mais uma trouxinha, que amarrei na cabeça com a corda, e fui nadando bem devagarinho para que ela não se molhasse. A correnteza me   arrastava rio abaixo, mas ainda assim eu ia conseguindo atravessar, e até era bom, pois me aproximava do milharal. 
Quando ganhei a outra margem, depois de descansar um pouco e vestir a roupa, apanhei duas espigas, que descasquei e meti na marmita com água do rio. Usei para cozinhá-las o mesmo processo que tinha usado com os ovinhos de codorna. Só que desta vez não havia mais sol, tive de empregar o processo dos índios, que era bem mais difícil: rolar um pauzinho entre as palmas das mãos, de maneira que a ponta se esfregasse noutro pauzinho até sair fogo. 
Desta vez me lembrei de jogar de volta a água no cantil. Quando esfriasse, serviria para beber, pois, além do mais, tinha sido fervida e estava livre dos micróbios. 
Só então me ocorreu que eu não deixara sinal de pista no outro lado do rio. Meus companheiros, se estivessem me seguindo, não saberiam que eu o havia atravessado. 
Como já estivesse escuro, fiquei por ali mesmo, no milharal, onde não tinha mais perigo: era plantação feita por mão de homem, que denunciava haver civilização por perto. Fiz uma cama de palhas de milho e dormi, depois de me regalar com as duas espigas que havia cozinhado e de beber a água do cantil, que já estava fria e gostosa. 
De manhã acordei com o sol na minha cara. Depois de lavar o rosto no rio e chupar uma pastilha de hortelã, fui andando ao longo da margem, até encontrar o que procurava: uma
casinha de lavradores. 
Era um casal de jecas que não entenderam nada do que eu contava, como se eu fosse um bicho raro surgido de repente na frente deles. Mas acabaram me dando um pedaço de broa de milho e falando numa estrada que passava ali perto. A meu pedido, me ensinaram como chegar até lá. Agradeci, me despedi   deles e parti. 
Achei a estrada, que era de terra, mas muito melhor andar nela que no meio do mato. Logo passou um caminhão e pedi uma carona. O motorista, um preto muito bonzinho, me deu um pedaço de rapadura e ouviu com admiração a minha história, enquanto seguíamos em direção a Itabirito, levantando poeira. Perguntou na estação onde era o acampamento dos escoteiros e fez questão de me levar até lá. 
Fui recebido e aclamado como um herói, em vez de ser castigado como esperava: disseram que aquilo poderia acontecer com qualquer um. Fiquei sabendo então a aflição que meu desaparecimento tinha causado. A tropa inteira passou aqueles dois dias à minha procura e ainda havia gente me procurando. A patrulha do Lobo, comandada pelo Toninho, havia encontrado a cobra que eu matara e visto no céu os meus sinais de fumaça. Seguiram as marcas que eu fora deixando pelo caminho e ao chegar ao rio, concluíram, inconsoláveis, que eu havia morrido afogado tentando atravessá-lo. 
Meu irmão ficou desarvorado. Quando mais tarde nos reencontramos, em meio à alegria geral, decidimos não contar nada em casa, para não afligir nossos pais. Mas, como sempre acontece, eles acabaram sabendo, e papai achava graça, pedia que eu narrasse a façanha para seus amigos. 
Naquela noite, depois de um excelente jantar, durante o Fogo do Conselho tive de contar com detalhes a minha aventura. Todos se admiraram e os chefes, impressionados, balançavam a cabeça dizendo que se tudo aquilo que eu dizia fosse verdade, então eu merecia uma condecoração, talvez mesmo o Tapir de Prata. 
E era tudo verdade — juro que só acrescentei uma mentirinha: disse que não tinha tido medo da onça que me fez subir na árvore.  




Fernando Sabino

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