O Menino No Espelho - Capítulo VI






                   NAS GARRAS DO PRIMEIRO AMOR 

UM DIA perguntei à Mariana: 
— Você quer ser minha namorada? 
A sociedade secreta Olho de Gato havia deixado de se reunir, mas Mariana e eu continuávamos nos encontrando, apenas como amigos. Os outros dois agentes secretos continuavam também por ali, prontos para entrar em ação, quando convocados: Hindemburgo com as suas cachorrices, e Pastoff sempre acoelhado no fundo do quintal. 
A resposta de Mariana me deixou estatelado de surpresa: 
— Você ainda é criança. 
— E daí? — gaguejei, despeitado: — Você também não é? 
Ela olhou para um lado e para outro, vendo se não havia ninguém por perto, e aproximou a boca do meu ouvido: 
— Eu já tenho namorado. 
Minha surpresa foi ainda maior. Tentei disfarçar com um gracejo: 
— Não vai me dizer que é o Pastoff. Mariana tinha um carinho especial pelo coelho. Mas ela continuou séria: 
— Se você jura que não conta para ninguém, eu digo quem é. 
Jurei com os dedos em cruz. 
— Então espera um instante. 
Foi até sua casa e em pouco voltava a correr, trazendo um recorte de revista: 
— Olha aqui ele. 
Era o retrato de um famoso artista de cinema, nem me lembro qual. 
— Ora, isso aí não é namorado nenhum — comentei, com desdém, mas no fundo aliviado: — Eu digo é namorado mesmo. Gente de verdade, como eu. 
Ainda me sentia ferido no meu amor-próprio, desprezado em favor de um rival inexistente: 
— Esse não passa de um pedaço de papel. Ela não se abalou: 
— Pois fique sabendo que é a ele que eu amo — e beijou o retrato com fervor diante de meus olhos. Depois fez meia-volta e correu para dentro de casa, recorte apertado contra o peito.  
MAIS de uma vez eu já tinha ido observar os casais nos bancos da praça, ou passeando entre os jardins. O que me intrigava era o jeito meio solene, a compostura deles. Por que ficavam sozinhos? Que é que tanto conversavam? E principalmente, por que às vezes não diziam nada, calados um junto do outro, como se estivessem aborrecidos ou pensando na morte da bezerra? Por que não iam fazer alguma coisa, tratar da vida, cada um para o seu lado? 
Naquela época não se admitia que os namorados nem mesmo se dessem as mãos — a menos que já estivessem comprometidos: feito o pedido de casamento e celebrado oficialmente o noivado, podiam os dois sair então de braço dado pela rua. Podiam até mesmo ficar conversando baixinho, sentados na varanda ou no sofá da sala, desde que na presença vigilante de alguém — em geral a mãe da moça a tricotar na cadeira de balanço. 
Eu já sabia tudo isto e sabia também que namorar, embora meio proibido pelos pais, ou por isso mesmo, era uma coisa boa. Mas só para as meninas. Elas é que não tinham outro assunto, principalmente as mais velhas, quando se reuniam, aos risinhos e cochichos. Para nós, homens de sete, oito, nove anos, namorar era uma bobagem, coisa para mulher. O que vinha a ser um contra senso: como as meninas poderiam se dedicar ao namoro, se os meninos não pensavam em fazer o mesmo? 
Foi o que me levou naquele dia a quebrar a regra que nos havíamos imposto de não dar confiança às mulheres, e perguntar à Mariana se queria me namorar. Jamais esperava uma negativa, e sua reação me deixou humilhado: quem ela pensava que era? Alguma princesa? 
Mas num ponto não deixava de ter razão — foi o que logo concluí: namoro era coisa séria, de gente grande, e para toda a vida — namoro, noivado, casamento. Não era brincadeira de menino. Por isso ela tinha escolhido um homem para namorar e não queria saber de uma criança como eu. Pouco importava que ela também fosse criança e ele um artista de cinema, que nunca seria visto em carne e osso. 
Decidi fazer o mesmo. Passei a reparar nas artistas, a fim de escolher uma para mim, a que me parecesse mais bonita. Em meio aos retratos de meus ídolos, que eram em geral jogadores de futebol e lutadores de boxe, passei a colecionar também o de atrizes de cinema, em figurinhas que acompanhavam as balas Fruna. Mas amava todas elas, indistintamente, não me decidia por nenhuma em particular. Ao contrário de Mariana, não me contentava em ter como
namorada alguém que só existia no papel ou na tela. 
Foi quando surgiu em Belo Horizonte aquela que passou a encarnar na vida real a figura do meu primeiro amor.  
CÍNTIA era minha prima — filha do irmão de mamãe, que morava no Rio. Viera passar uns dias conosco. Era a primeira vez que eu tomava conhecimento da sua existência. Devia andar pelos dezessete, dezoito anos, o que queria dizer que era para mim uma mulher feita — e a mais bela que eu jamais vira de perto. Usava blusa sem manga e com decote, saia calça, tinha os cabelos louros, os olhos verdes e ainda por cima fumava. 
Mamãe se escandalizou ao vê-la tirar calmamente da bolsa um cigarro na vista de todos e acender, para depois cruzar as pernas e soltar devagarinho a fumaça pelas narinas: 
— Você fumando, menina? Seu pai sabe disso? 
— Ora, titia, que é que tem de mais? 
— Uma moça direita não fuma. 
— Hoje em dia toda mulher fuma. Não é mais pecado. 
E ela desviou da testa uma madeixa de cabelos, movimentando a cabeça para o lado num gesto que me pareceu simplesmente lindo. 
A sua presença fez com que nossa casa ganhasse uma aura de encanto, como um lugar privilegiado, de um fascínio que parecia impregnar o próprio ar que eu respirava. Quando ela
surgia na sala, tudo se iluminava. Eu voltava correndo da escola para não perder um minuto da sua presença, e não arredava pé de casa, nem mesmo para ir ao quintal, meu reino esquecido.
Mamãe estranhava aquela mudança nos meus hábitos: 
— Não sei o que deu nesse menino. 
Nem eu mesmo sabia que estava experimentando pela primeira vez a sensação inebriante de uma paixão. 
Como se fosse pouco, Cintia tocava piano. Eu ficava a seu lado, embevecido, a ver as mãos longas e brancas deslizando pelas teclas do velho piano na sala de visitas. Em casa ninguém tocava, a não ser eu mesmo, batucando o Bife com dois dedos, escondido de meu pai: ele costumava dizer, certamente para silenciar a musiquinha insuportável, que ela atraía o demônio. Cintia sabia uma porção de melodias americanas, chamadas de fox-trot. Veio daí, creio, o meu gosto pelo jazz: 
— Toca de novo aquela primeira, Cintia.  
Ela tocava esta e aquela, a meu pedido. Depois atirava para o lado, naquele gesto seu, a cortina de cabelos que lhe caía no rosto. Um dia, ao dar comigo a contemplá-la, extasiado,
inclinou-se rindo e me deu um beijo no rosto. 
Meu coração disparou, e eu com ele: saí correndo da sala, fui me refugiar no fundo do quintal, pela primeira vez naqueles dias. E naquela noite não consegui dormir. Era ela que eu via diante de mim, no escuro do quarto, tocando piano, os cabelos louros, os olhos claros, a cena do beijo. Toninho, ao perceber que eu continuava acordado, chegou a perguntar se eu estava sentindo alguma coisa. Não, eu não sentia nada — a não ser o desejo de que a noite passasse depressa e chegasse logo a manhã para que eu pudesse rever a minha amada.  
  Mas porque a partir daquele instante tomei consciência de que Cíntia era o meu primeiro amor. 
MAS o que é bom dura pouco. Só medi a verdadeira extensão do sentimento que me possuía, quando surgiu um tormento para submetê-lo à prova, na forma de um rival: 
— Você vai sair com ele, Cíntia? — eu perguntava, como quem não quer nada, ao vê-la se penteando no quarto, enquanto o Peixoto esperava lá fora, na varanda. 
— Vamos ao cinema — ela respondia, diante do espelho, juntando os lábios, como num beijo, para passar o batom. 
O Peixoto era um advogado recém-formado, de anel de grau no dedo, que tivera um negócio qualquer com meu pai, e por causa disso frequentava a nossa casa. Um dia deu com os olhos na minha prima e a partir de então começou a aparecer com uma odiosa frequência. Em pouco os dois passaram a sair juntos. Não se podia dizer que estavam de namoro, embora já tivessem até ido passear na praça, como os demais namorados — o que não escapou à minha vigilância, pois os havia seguido de longe. Mas para mim eram muito mais do que isso: ele era um indesejável, um intruso, um intrometido em nossa casa, e ela uma traidora, por lhe dar tamanha confiança. 
— Rapaz distinto, esse Peixoto — dizia minha mãe, no fundo fazendo gosto na relação dos dois: — Leva a Cíntia para passear, faz companhia a ela, e é respeitador, a gente fica mais sossegada. 
Papai já não era assim tão seguro da distinção do rapaz: 
— Não sei não... No fundo me parece meio finório, o que não é nada mau para um advogado.
Mas não vá esse pilantra me aprontar alguma com a menina. Com que cara eu ficaria diante do seu irmão? Afinal, ele nos confiou a filha... 
Era o que meus pais conversavam, sentados no sofá da sala, depois do jantar, julgando-se a sós, mas ao alcance de meus ouvidos — eu por ali a me fingir de distraído com algum
brinquedo, na verdade atento a tudo que se relacionasse à minha prima. E ela com o outro no cinema, no clube, no chá-dançante... Quase não parava mais em casa, a ingrata, mal tinha tempo para mim. Eu odiava o Peixoto com todas as forças, ele acabou percebendo: 
— O pirralho não vai muito comigo — disse um dia. 
Fiquei indignado: me chamar de pirralho, e ainda por cima na vista dela! Atingido em meus brios, resolvi reagir. Cheguei a pensar em acionar a sociedade Olho de Gato, mas, pensando melhor, decidi me vingar sozinho: senti por instinto que não devia envolver a agente Anairam em meus problemas sentimentais. Aquilo era assunto para ser resolvido de homem para homem.  
Concebi um plano diabólico para afastar da Cíntia o meu insuportável concorrente. Comecei por intrigá-lo com papai, farejando nele um bom cúmplice, embora inconsciente: 
— O Peixoto esqueceu o isqueiro dele no quarto da Cintia. 
Ele havia realmente esquecido o isqueiro, mas com ela, e não no quarto. Só que para um coração em pânico valia tudo, inclusive uma mentirinha. Papai ficou aborrecido: 
— O salafrário já está entrando no quarto da menina? 
E não perdeu tempo em comentar com mamãe: 
— É preciso a gente abrir o olho com esse moço. 
Alguns dias depois voltei à carga, desta vez com a própria Cíntia: 
— Ontem eu vi o Peixoto lá na Avenida de braço dado com uma moça. 
Ela não chegou a se impressionar — talvez porque não soubesse o compromisso que representava o braço dado, coisa que certamente não prevalecia mais no Rio. Mas na verdade eu havia visto mesmo o meu rival de braço com uma mulher. Só que não era uma moça, podia ser até a mãe dele: uma mulher mais velha, toda elegante e enfeitada. 
O Peixoto, ele próprio, era metido a elegante, sempre na última moda, calça de flanela creme e paletó azul-marinho, sapato de duas cores e suspensório de couro trançado, como se usava então. 
Uma noite apareceu em nossa casa com a novidade das novidades: um automóvel, novinho em folha. 
— Quero estreá-lo com você. 
Viera buscar minha prima para dar uma volta, e nem se dignou convidar meus pais, que dirá a mim, para ir com eles: 
— Não cabe todo mundo — se escusou, empertigado: — É um carro esporte. 
O carro era um daqueles chamados baratinhas, que se podia arriar a capota e tinha uma tampa atrás com dois lugares (caberia mais gente, portanto). Ficaríamos sabendo depois que nem mesmo era dele, estava apenas emprestado, em experiência, como se usava então. 
Naquele tempo não se admitia também que uma moça de família andasse sozinha no automóvel de alguém; corria logo o risco de ficar falada. Não sei por que meus pais não
invocaram esse princípio moral, proibindo que ela fosse. 
Ali estava a minha oportunidade — decidi rapidamente: criar uma situação que deixasse o Peixoto para sempre desmoralizado diante da Cíntia. Que fazer? Jogar pó-de-mico nele? Já tinha pensado nisso — mas podia atingi-la também. Esvaziar o pneu? Botar água no tanque de gasolina? Tudo o que me ocorreu era pouco, não chegaria a comprometer o rival aos olhos da minha amada.  
 Foi quando dei comigo distraidamente alisando a cabeça de Hindemburgo, que se aproximara, orelhas em pé, para saber de que se tratava. 
— Quem sabe se eu atiçar o Hindemburgo em cima dele... 
Imaginei o Peixoto fugindo espavorido, o cachorrão nos seus calcanhares, mordendo-lhe a perna, rasgando-lhe a calça... 
— Ai não, Hindemburgo. 
Ao vê-lo agachar-se, pernas traseiras ligeiramente abertas, ocorreu-me a idéia luminosa: 
— Aí não, Hindemburgo! — repeti, inspirado: — No carro do Peixoto! Depressa, no banco do carro! No lugar do motorista! Quando ele se sentar... 
Hindemburgo compreendeu logo e partiu como um foguete para cumprir a sua missão. 
Quando o Peixoto se sentou, antes de abrir a porta para que a Cíntia entrasse também no carro, estava consumado o desastre. Não houve passeio, não houve nada: Peixoto, chafurdado no assento, partiu em disparada, numa onda de mau cheiro, sem nem se despedir, e Cíntia ficou livre dele — eu esperava que para todo o sempre. 
A pá de cal seria lançada sobre ele alguns dias depois, quando papai chegasse da rua com uma novidade: 
— Me disseram que o Peixoto vive com uma amante mais velha do que ele. 
Na hora, porém, para minha completa surpresa, a reação da Cíntia se voltou contra mim: 
— Foi você! Tenho certeza de que isso foi coisa sua, seu moleque! 
E se dirigiu aos meus pais, indignada, me apontando: 
— Foi ele sim! Ele não gosta do Peixoto, eu sei disso! 
Eu não podia mais de emoção, petrificado diante de palavras tão duras. Eu, o seu namorado inconfesso, chamado de moleque! Meus pais reagiram cada um à sua maneira: mamãe fazendo um ar de perplexidade que escondia a indecisão entre acreditar ou não dar ouvidos,
papai se pondo a rir: 
— Se foi coisa do Fernando, foi um malfeito bem feito. 
E ainda teve o bom humor de acrescentar, ele que também não gostava do Peixoto: 
— Acho que foi coisa é do cachorro... Cíntia tinha ido para o seu quarto, ainda revoltada com o que havia acontecido. O desastre, afinal, se voltara contra mim — o mundo parecia ter
desabado sobre a minha cabeça. 
Naquela noite fui para a cama mais cedo, pretextando um mal-estar qualquer. Mas não consegui dormir. Sem deixar que o Toninho percebesse, passei grande parte da noite
chorando.  
NA MANHA seguinte encontrei debaixo de minha porta um envelope fechado. Abri-o ansiosamente com o meu canivetinho, já adivinhando de quem seria. Retirei um pequeno bilhete: 

                                          Fernando
                                           Eu te amo
                                           Me perdoa


Saí do quarto precipitadamente, mas não encontrei a Cíntia na sala, nem em seu quarto, nem em lugar nenhum. Dei com meu pai na copa tomando o seu café: 
— Cíntia foi embora? — perguntei, aflito. 
— Ela saiu — ele informou tranqüilamente, e acrescentou logo, rindo: — Mas não com o Peixoto. Saiu com sua mãe, foram fazer compras na cidade. 
Cíntia estava de partida na manhã seguinte. Não tive, desde então, oportunidade de estar com ela a sós um momento sequer, para de alguma maneira responder ao seu bilhete. Quando fui para a escola, ela ainda não tinha chegado, e ao voltar, ela estava em companhia de algumas amigas que havia feito em Belo Horizonte, e que ficaram para jantar. Só na manhã seguinte pude lhe dirigir uma palavra furtiva, já na hora de sua partida: 
— Eu também, Cíntia — disse-lhe baixinho. 
— Você também o quê? — e ela se curvou para me abraçar, se despedindo. 
Deu-me um beijo em cada face, e eu me aproveitei para sussurrar ao seu ouvido: 
— Eu também te amo. 
Ela ficou parada um segundo, surpreendida, e depois se abriu num sorriso que eu guardo até hoje entre as lembranças mais lindas da minha vida. 
Depois que ela se foi, tranquei-me no quarto e busquei seu bilhete para relê-lo ainda uma vez, por entre as lágrimas que me escorriam dos olhos. Ao enfiar os dedos no envelope, puxei com o bilhete um outro pedaço de papel, onde, surpreso, dei com as seguintes palavras: 

                         lei ontem, não foi?
                         te chamar de moleque.
                             
                                  Cíntia

Era apenas um pedaço do bilhete, que eu havia cortado em dois ao abrir o envelope. Juntei os pedaços e pude enfim ler o bilhete completo: 

                     Fernando, te amolei ontem, não foi?
                     Me perdoa te chamar de moleque.

                                        Cíntia


NAQUELA mesma tarde a Mariana, que andava sumida, deu o ar de sua graça: 
— Então, sua amiguinha já foi embora? — perguntou com voz irônica. 
Respirei fundo, espantando de mim o resto da minha mágoa: 
— Minha amiguinha é você, Mariana.   


Fernando Sabino

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