Cheguei
da escola bem atrasado. O Júnior tinha aparecido com uma bola nova e a gente é
claro que tinha de experimentar a novidade no pátio. O Bedel, que entendia
dessas necessidades, sempre deixava a gente se divertir um pouco antes de
aparecer fingindo cara de bravo e mandando a gente pra casa.
E agora?
Bom, daí eu resolvi inventar que o ônibus tinha quebrado pra me desculpar pelo
atraso.
Quando eu
sentei à mesa para o almoço que a vovó tinha requentado no micro-ondas, o vovô
olhou firme para uma marca de bolada na minha camisa, para o meu joelho esfolado
e, com aquele jeito carinhoso dele, passou a mão pelo meu cabelo e sorriu:
– Ah, no
meu tempo, isso não teria acontecido...
– Ué, vô!
No seu tempo os ônibus não quebravam? – perguntei, assustado, para proteger a
mentira.
– Ah, ah!
– riu-se ele. – Essa cidade era um ovo, no meu tempo. Não tinha nem asfalto na nossa
rua! A gente acordava cedinho e ia a pé pra escola. Eu só me atrasava na volta
se alguém tivesse a ideia de um joguinho de futebol. Daí, quem haveria de
resistir a uma partida antes do almoço?
Pronto! O
danado do vovô tinha descoberto tudo! Será que ele ia entregar minha mentira
para o papai, quando ele chegasse do escritório? Eu precisava desviar aquela conversa:
– Você
gostava de jogar bola, vovô?
– Se
gostava! A gente jogava na rua mesmo, que era de terra e por onde quase não passava
carro nenhum. Mas no meu tempo o que era mais difícil era a bola. As que existiam
eram chamadas “bolas de capotão”. Eram de couro cru, com gomos costurados a mão
e custavam uma fortuna. A gente jogava mesmo era com bola de meia.
– Bola de
meia?! O que é isso?
– A gente
pegava uma meia velha, enchia de trapos, dava um nó no cano da meia, envolvia
tudo com barbante bem apertado e pronto! O problema é que a bola não quicava, pois
não tinha câmara de ar por dentro. Mas dava pra chutar e driblar que era uma
beleza! – Vovô ergueu os olhos como se pescasse uma lembrança gostosa no teto
da sala. – Ah, mas o que a gente queria mesmo era uma bola de verdade, a gente
sonhava com uma bola de capotão! E aí... aí foi que aconteceu a nossa
tragédia...
–
Tragédia, vô? O que aconteceu?
– Como os
pais da gente jamais arranjariam dinheiro pra comprar uma bola de verdade, nós
resolvemos que o problema era nosso: cada um de nós ia poupar todos os tostões
que conseguisse, de nossas mesadas minguadas. Passamos meses sem tomar sorvete,
sem comprar balas, e sem ir à matinê aos domingos. Ah, perder os filmes do Carlitos
e do Gordo e o Magro, que eu adorava! Mas a bola era mais importante e ninguém
se queixou do sacrifício. As moedinhas iam sendo guardadas numa caixa de
charutos que ficava debaixo da cama do Travessão, que era o mandão lá do nosso
time. Até que... ah, daí chegou o dia em que a caixa já tinha o dinheiro
suficiente para uma bola de capotão!
E lá
fomos nós, todos juntos, à loja do seu Nicanor, que importava as bolas da
Inglaterra. E com que alegria nos juntamos logo depois da aula para a primeira
partida com uma bola de verdade! Que alegria!
– Mas
cadê a tal tragédia, vovô?
–
Aconteceu no mesmo dia. A partida começou, mas a gente não estava acostumado
com os pulos que aquela bola podia dar. Estávamos acostumados a encher o pé
para que as nossas bolas de meia fossem com força suficiente para o gol. Mas,
com a bola de capotão, era preciso aprender a dosar a força do chute e... bom,
e o Travessão deu uma bica daquelas e a bola passou ventando por cima do muro
de uma casa vizinha e – bumba! – chapou-se contra a parede da sala!
A
história estava divertida. Talvez eu tivesse conseguido distrair o vovô. Na
certa, ele ia esquecer de contar a minha escapada para o papai.
– E aí é
que veio a tragédia... – continuou o vovô. – A dona da casa, uma fulana bem mal-encarada,
veio lá de dentro com a bola e uma faca na mão. Olhou furiosa pro nosso lado e
– lept, lept! – cortou a nossa bola inteirinha!
– Que
horror, vô!
– Ninguém
sabia o que dizer. Lembro que meus olhos se encheram de lágrimas. Mas o
Travessão não chorou, não. Calmamente, pegou nossa bola de meia, desamarrou
tudinho e enfiou uma pedra de bom tamanho lá dentro. Fechou tudo de novo,
amarrou e ajeitou a bola no chão. Tomou distância e deu o maior chute da vida
dele! E a bola recheada com pedra foi
direitinho
para a vidraça da velha malvada e – crás! – lá se foi vidro pra todo lado!
A
narrativa parou nesse ponto e o vovô baixou os olhos pra mim. Eu engoli em seco
e perguntei:
– Vô...
Quando você se atrasava por causa dessas partidas você não levava bronca, vô?
– Claro
que levava! E olha que eu não tinha nem a desculpa de dizer que o ônibus tinha
quebrado... No meu tempo, a gente só andava de bonde. E não passava bonde na minha
rua...
Eu mal
conseguia engolir a comida. Olhei de lado para o vovô e perguntei:
– Você
tinha avô, vovô?
– Tinha.
Era um homem sério, de poucas palavras.
E agora?
Eu estava perdido!
– Mas...
e... quando você fazia alguma coisa errada, ele contava tudinho pro seu pai?
– Ora, é
claro que não! – disse ele, largando o corpo para trás na cadeira e iniciando uma
gargalhada. – Ah, ah! Eu não disse que ele era de poucas palavras?
Ufa! Que
avô legal o meu! Eu estava salvo!
Fui atrás
da vovó, que tinha deixado a louça na máquina de lavar pratos e sentava-se ao computador,
conectando-se à Internet.
– Vovó,
como você fazia para se ligar à Internet no seu tempo?
Vovó
desviou os olhos do monitor, olhou séria para mim e respondeu:
– Ora,
querido. Eu estou muito viva. Meu tempo é agora!
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