Enquanto lá na floresta Pedrinho pensava no melhor meio de vingar-se da boneca,
Narizinho resolvia dar um passeio pelo pomar. Costumava fazer isso nas tardes
agradáveis, sempre em companhia da sua companheira. Naquele dia, porém, Emília
fez luxo.
— Não posso hoje — disse mostrando o
cavalinho. – Estou ensinando o ABC a este analfabeto, que anda com vontade de
ler a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Troia e outras
“cavalências” célebres.
Narizinho não gostava de passear só,
por isso correu os olhos pela sala em procura de algum outro companheiro. Só
viu o triste irmão de Pinóquio, que Pedrinho havia jogado para cima do armário.
— Coitado! — exclamou. — Porque é
feio como o Diogo e morto como um defunto, ninguém faz conta dele. Vou levá-lo
comigo.
Talvez que os ares do ribeirão lhe
façam bem.
Pescou-o de cima do armário com o
cabo da vassoura e lá se foi com ele ao pomar, rumo do ribeirão, onde havia
aquele velho pé de ingá de enormes raízes de fora. Sentou-se na “sua raiz”
(havia outra de Pedrinho e outra do Visconde), recostou a cabeça no tronco e
cerrou os olhos, porque o mundo ficava três vezes mais bonito quando cerrava os
olhos. De todos os lugares que ela conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali
que vira pela primeira vez o príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava
pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar castelos.
O sol ia descambando no horizonte
(“horizonte” era o nome do morro atrás do qual o sol costumava esconder-se) e
seus últimos raios vinham brincar de acende-e-apaga brilhinhos na correnteza.
Volta e meia um lambari prateava o ar com um pulo.
De repente Narizinho ouviu um bocejo
— ahhh! Olhou… Era Faz-de-conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo
sono.
Achando aquilo a coisa mais natural
do mundo, a menina apenas disse:
— Ora graças! eu tinha certeza de que
os ares do ribeirão fariam você mudar.
— Eu sou sempre o mesmo — respondeu o
boneco. — Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas.
Você mudou, Narizinho.
— Como isso? — exclamou a menina
franzindo a testa. – Estou no que sempre fui…
— Parece. Tanto mudou que está
entendendo a minha linguagem e vai ver coisa que sempre existiu neste sítio e
no entanto você nunca viu. Olhe lá!
A menina olhou para onde ele apontava
e realmente viu um bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssima
tule, dançando por entre as árvores do pomar. No meio delas estava um ente
estranho, de orelhas bicudas como as de Mefistófeles, dois chifrinhos na testa
e cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, numa flauta feita
de canudos incões, tal qual a casa de barro que umas vespas chamadas “Nhá
Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de dona Benta.
— Oh! — exclamou a menina
recordando-se. — Ainda ontem vi num dos livros de vovó uma gravura com uma cena
igualzinha a esta. São as ninfas do bosque e o homem é um fauno.
Apesar de ter falado baixo, as
dançarinas ouviram aquelas palavras e, não se sabe por que, fugiram numa
corrida louca em todas as direções. O fauno até deixou cair a sua flauta.
— É minha agora! — gritou Narizinho
correndo a apanhá-la.
— Ganhei uma flauta de Pã!…
Mas, ai! Agarrou a flauta com tanta
força que a moeu, porque era de barro e estava cheia de vespas, que voaram numa
grande aflição atrás das ninfas. Só ficou uma, presa entre o polegar e o fura
bolos da menina.
— Que vespa esquisita! — exclamou
ela, examinando atentamente a prisioneira. — Parece uma velhinha coroca.
— Hein? — murmurou Faz-de-conta
chegando e olhando. – Estou reconhecendo esta vespa. Quando o tronco de pau de
que fiz parte era árvore viva, cheia de flores cada mês de setembro, muitas
vezes a vi lá em nossos galhos. Desconfio que é uma fadazinha disfarçada em
vespa.
— Se é fada — disse a menina
duvidando — por que não fugiu com as outras e deixou que eu a pegasse?
— Porque queria conversar com você —
respondeu a vespa.
A menina arregalou os olhos tomada de
grande alegria.
— É fada mesmo, Faz-de-conta! E das
que falam, porque há umas que só fazem tlim, tlim, tlim, como aquela fada
Sininho que gostava de Peter Pan. Que pena Pedrinho e Emília não estarem aqui.
Vão ficar danados de eu ter visto fadas antes deles.
A vespa-fada contou-lhe sua vida
desde que nasceu e disse que já de muitos anos andava a correr mundo atrás de
um alfinete mágico sem o qual não poderia ser, bem, bem, bem, fada das que
podem tudo e viram uma coisa noutra. Esse alfinete era uma varinha de condão
das mais poderosas, que andava perdida entre os mortais. Ao ouvir aquilo o
coração da menina pulou dentro do peito. Lembrou-se logo do alfinete que tia
Nastácia havia dado à boneca e imaginou que talvez fosse o tal alfinete mágico.
Para certificar-se indagou…
— Não era um alfinete de pombinha
carijó?
— Isso mesmo! Como sabe? — exclamou a
fada, admiradíssima.
Narizinho viu que havia feito asneira
dizendo aquilo, pois a vespa poderia tomar o alfinete da boneca, impedindo-a de
vir a ser uma famosa fada de pano — coisa que nunca existiu. Quis remendar a
imprudência e disse:
— Sonhei. Sonhei a noite passada com
um alfinete assim, isto é, mais ou menos assim. Não era de pombinha, não, agora
me lembro. Era de galo ou bicho parecido. Como a senhora sabe, os sonhos são
sempre atrapalhados.
— Mais atrapalhadas são as mentiras
de nariz arrebitado! — disse a vespa, fugindo da mão da menina e indo pousar
num galho de árvore. — Estou vendo que você sabe onde está o alfinete e não
quer me contar.
Faz-de-conta chegou-se ao ouvido da
menina e cochichou:
— Não caia nessa! Não conte! Você lá
sabe se ela merece? Com fadas é preciso muita cautela, porque se algumas são
anjos de bondade, outras são más como bruxas.
— Estou ouvindo tudo! — disse a vespa
lá do galho. — E para castigo vou dar uma ferroada bem venenosa na ponta do
nariz dessa menina má. Esperem aí!…
E começou a inchar, a inchar, até
ficar do tamanho duma enorme aranha caranguejeira. E arreganhou os terríveis
ferrões e lançou-se contra a menina.
— Acuda, Faz-de-conta! — berrou
Narizinho fechando os olhos.
Ela sabia que o melhor meio de
escapar dos grandes perigos era fechar os olhos, bem fechados, como a gente faz
nos sonhos quando sonha que está caindo num precipício.
De um pulo Faz-de-conta colocou-se
entre a vespa e a menina, pronto para sacrificar a vida em sua defesa. O boneco
era feio, mas tinha a alma heróica. E como estivesse desarmado, puxou do prego
que prendia sua cabeça ao corpo, como quem puxa duma espada e investiu contra a
vespa. Ao fazer isso, porém, sua cabeça caiu por terra, rolou morro abaixo e
foi mergulhar — tchibum! — no ribeirão.
A vespa assustou-se ao ver tão
estranha criatura avançar para ela de prego em punho e sem cabeça. Assustou-se
e — zunn! – desapareceu no ar…
— Pronto? — perguntou a menina sempre
de olhos fechados.
Ninguém respondeu.
— Ela ainda está aí? — perguntou de
novo.
Ninguém respondeu.
Narizinho foi então entreabrindo os
olhos, com muito medo, e afinal abriu-os de todo. Mas deu um grito de horror,
ao ver o boneco na sua frente, de prego na mão e sem cabeça.
— Que é isso, Faz-de-conta? Que fim
levou sua cabeça?
O boneco está claro que nada
respondeu. Só tinha boca e ouvidos na cabeça e como a cabeça rolara morro
abaixo não podia ouvi-la nem responder.
— E agora? — disse consigo a menina.
— Este lugar me parece muito perigoso, e sem auxílio de Faz-de-conta podem me
acontecer grandes desgraças. Se ao menos houvesse aqui por perto alguma
casinha…
Olhou em redor e viu não muito longe
uma fumaça. “Deve ser casa”, pensou, e correu para lá. Era casa, sim, a mais
linda casa que ela viu em toda a sua vida, com trepadeiras na frente e duas
janelas de venezianas verdinhas.
A menina bateu — toc, toc, toc…
— Entre quem é! — gritou de lá dentro
uma voz.
Narizinho abriu e entrou e deu um
grito de alegria.
— Capinha! Que felicidade
encontrar-te aqui!
— E a minha felicidade de receber tua
visita ainda é maior, Narizinho! Há quanto tempo te espero!…
Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram
de mãos presas e os olhos postos uma na outra. Era ali a casa da Menina da
Capinha Vermelha, cuja avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha
estado no sítio de dona Benta no dia da recepção dos príncipes encantados e
ficara gostando muito de Narizinho e Emília, tendo-as convidado para virem
passar uns dias com ela.
— Mas por que não me avisaste da tua
visita, Narizinho ?
— É que cheguei aqui por acaso. Vi-me
só na floresta, depois que meu guia perdeu a cabeça, e não sei o que seria de
mim se não fosse a fumacinha de tua casa, que vi de longe. E vim correndo, mas
sem saber quem morava aqui.
Narizinho contou então tudo o que lhe
havia acontecido e a terrível desgraça que sucedera a Faz-de-conta.
— Que coincidência! — exclamou
Capinha. — Não faz minutos eu estava tomando banho no ribeirão e um objeto,
feito castanha de caju veio rolando pela água abaixo até esbarrar em mim.
Peguei-o, olhei e vi que era uma cabeça, com boca, nariz e tudo. Quem sabe se
não é a cabeça de Faz-de-conta? Está guardada no bolso do meu avental.
Foi lá dentro e trouxe a cabeça.
— É essa mesma! — exclamou Narizinho
satisfeitíssima daquele inesperado e feliz desenlace. — Vou consertar o meu
João, já, já.
Foi um instante. Em meio minuto a
cabeça do boneco estava outra vez no lugar e ele em condições de falar e contar
tudo o que acontecera enquanto a menina estivera de olhos fechados. Quando
Faz-de-conta concluiu a narrativa, Capinha suspirou e disse:
— Quem me dera ter um companheiro
leal e valente como este! Vivo tão sozinha nestas solidões…
Narizinho prometeu que viria
visitá-la sempre que pudesse.
— E não deixe de trazer a Emília.
Gostei muito dela.
Narizinho contou-lhe, então, em
grande segredo para que alguma vespa escondida por ali não pudesse ouvir, que a
boneca estava na posse do alfinete de pombinha, que era uma vara de condão e
poderia, portanto, de um momento para outro, virar uma poderosa fada — e uma
fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano.
— Pois ela que se transforme e
apareça por aqui para brincarmos de virar.
Nisto surgiu João Faz-de-conta, que
tinha saído para o terreiro a fim de refrescar a cabeça. Vinha muito alegre,
dizendo:
— Adivinhem quem passou por aqui!
Peter Pan. Conversou comigo meio minuto e lá se foi, voando, para a Terra do
Nunca, onde mora. Disse que qualquer dia aparece no sítio de dona Benta para
brincar com Pedrinho.
— Que pena não ter portado um minuto
para tomar café conosco! — exclamou Capinha. — Ele sempre me visita e gosto
muito dele.
Narizinho, que já conhecia Peter Pan,
fez várias perguntas a respeito desse extraordinário “menino que jamais quis
ser gente grande” e de sua inseparável companheira, a fada Sininho. E ainda
estava a ouvir histórias dele, quando Faz-de-conta deu um berro de desespero,
apontando para a estranha figura que acabava de pular a cerca do quintal com
uma enorme faca de matar mulher na mão.
— Feche os olhos, Narizinho! — gritou
ele. — Barba Azul vem vindo!…
A menina, para salvar-se fechou os
olhos com quanta força teve…
Continua… VII – O Alfinete
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol.
I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa