Na aldeia de Sofia, o sol é muito brilhante e faz sempre muito
calor. Raramente chove mas, quando isso acontece, a chuva cai,
ininterruptamente, dias seguidos.
Era um dia abrasador e Sofia não conseguia abrir os olhos naquela luz tão intensa. No ar pairava uma quietude quando, de repente, se ouviu um ruído semelhante ao zumbido de um enxame de abelhas, que aumentava cada vez mais. O porco começou a grunhir e as galinhas a cacarejarem. Sofia queria perceber o que se passava e, sentada direita como um pau de vassoura, pôs-se à escuta. "Deve ser a carrinha do homem dos números", pensou ela enquanto esfregava os olhos.
Uma vez por ano, um homem da cidade chegava à aldeia numa carrinha vermelha. A gente da aldeia dizia que era o homem dos números. O homem contava as pessoas da aldeia a mando do governo. Depois de fazer o seu percurso, o homem parou defronte da casa de Sofia.
— Quantas pessoas vivem aqui? — perguntou.
— Duas — respondeu Sofia, — a minha mãe e eu.
— Vejamos, assim dá um total de 154 pessoas. O ano passado eram…
O homem dos números tinha ouvido dizer que o pai de Sofia morrera porque não havia médico na aldeia e não havia nenhum hospital por perto.
Sofia olhava fixamente para o calçado do homem.
— Ah! Nunca viste umas sapatilhas?
Sofia ficou ruborizada. O segredo, que acalentava há tanto tempo, ocupou-lhe por inteiro o pensamento, que voou para tão longe como os falcões voam em grandes círculos no azul dos céus. No fundo do coração Sofia sentia que, se algum dia tivesse umas sapatilhas iguais às daquele homem, o seu desejo se transformaria em realidade.
— Vamos até à margem do rio? — disse o homem dos números. — Põe os pés nessa lama de barro fino. Agora sai!
Sofia gostou da sensação do barro a escorrer por entre os dedos dos pés. O homem tirou a régua do bolso das calças e mediu as marcas dos pés de Sofia. Enquanto coçava a barba, fazia contas em voz alta e acabou por dizer:
— Vejamos… dentro de trinta dias vais receber um presente.
Sofia contava os dias… Algum tempo depois, a carrinha dos correios atravessou a aldeia e deixou-lhe na porta de casa um pacote. Depois de sofregamente abrir o pacote, gritou:
— Umas sapatilhas!
Calçou-as com muito cuidado e exclamou:
— Agora, já posso realizar o meu desejo secreto!
— Que desejo? — perguntou a mãe.
— Agora já posso ir à escola, mãe!
— Mas, minha querida, a escola fica a oito quilômetros e o caminho é muito mau!
— Eu sei, mãe, mas é que eu agora tenho umas sapatilhas… — respondeu Sofia enquanto saltitava de alegria.
Um sorriso começou a desenhar-se lentamente na boca da mãe de Sofia. Recordou a filha de vestido amarelo, cor do sol, a correr ao lado do pai que, com a pequena lousa preta debaixo do braço, procurava a sombra de um coqueiro. Recordava a filha, de olhar fixo e sem pestanejar, a olhar a lousa onde o pai fazia sarrabiscos a que chamava letras: "Este aqui é o teu nome e este é o nome da nossa aldeia", ensinava ele à Sofia.
— Creio que podes ir à escola — disse então a mãe à Sofia.
No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido e já Sofia comia uma tigela de arroz com peixe salgado e se punha a caminho através dos arrozais. As sapatilhas protegiam-na das pedras aguçadas. E corria como se tivesse asas nos pés!
Com um salto atravessou riachos e percorreu uma estrada deserta, onde só passava um carro de longe a longe. Sofia corria e corria, cada vez mais depressa, até que por fim avistou a escola que tinha apenas uma sala de aula.
As sandálias dos alunos estavam, em fila alinhada, junto à porta da entrada. Sofia tirou rapidamente as sapatilhas, colocou-as junto às outras sandálias e entrou descalça na sala de aula.
— O meu nome é Sofia e venho à escola para aprender a ler e a escrever!
Na sala, onde havia só rapazes, começaram logo os risinhos.
— Silêncio! — disse a professora, colocando o dedo sobre os lábios fechados.
— Vem cá, és muito bem-vinda. Diz-me, de onde vens?
— De Andong Kralong.
A professora, apanhada de surpresa, disse em surdina:
— Mas, essa aldeia fica a oito quilômetros daqui!…
— Pois fica, senhora professora, mas eu tenho as minhas sapatilhas!
Os rapazes continuavam com as suas risadinhas, tapando a boca com as mãos. Os olhos da Sofia encheram-se de lágrimas.
— Mas, tu és uma moça! — sussurrou um dos alunos.
Sofia engoliu toda a raiva que sentia e manteve-se de cabeça erguida e quieta como a serpente antes de atacar a presa. Em breve chegaria o momento da desforra.
Acabada a aula, Sofia calçou as sapatilhas e atou os seus cordões, com um triplo nó. Então, virou-se para os rapazes, olhou-os de frente e disse:
— Já que são tão espertos, venham agarrar-me!
Os rapazes, empurrando-se uns aos outros, logo desataram a correr atrás dela. Em vão.
Na manhã seguinte, Sofia acordou antes do cantar do galo. Sair tão cedo permitiu que fosse a primeira a chegar à escola. Os rapazes iam chegando de sorriso envergonhado… É que ainda não tinham esquecido a derrota, na corrida da véspera. E, a partir daquele dia, Sofia aprendeu muito naquela escola de uma única sala.
Passou um ano. Uma manhã, Sofia estava sentada junto da mãe quando, de repente, se levantou uma nuvem de poeira na encosta. O porco começou a grunhir. As galinhas a cacarejarem. Era o homem dos números que voltava na sua carrinha vermelha.
Nesse momento, as primeiras gotas de chuva começaram a formar pequenos círculos na superfície da água do rio, círculos que se alargavam cada vez mais. Começava a monção. Sofia olhou as nuvens que se formavam e pensou que, agora, iria ter menos calor a caminho da escola.
O homem dos números contou as pessoas da aldeia e, ao fim do dia, chegou a casa de Sofia. E olhou para os pés nus da menina.
— Onde estão as tuas sapatilhas? — perguntou.
Sofia sorriu e, com ar de desafio e mãos na cintura, disse:
— Só calço as minhas sapatilhas para ir à escola.
E os dois começaram a rir.
— Hoje, eu quero mostrar-lhe uma coisa — disse Sofia. — Venha comigo, por favor.
Caminharam juntos e em silêncio, até à margem do rio. Chegados aí, Sofia, de cabeça baixa, disse timidamente:
— Um dia, quero construir uma escola na minha aldeia, e…
— O quê?
— Também quero ser professora — afirmou Sofia.
Pegou numa cana de bambu e agarrando-a com as duas mãos, escreveu na lama de argila:
Muito obrigada pelas sapatilhas.
Agora, já sei ler e escrever.
E fez-se um tal silêncio que se podia ouvir o borbulhar da água a correr por entre os seixos.
Frederick Lipp
Las zapatillas deportivas de Sofía
Barcelona, Intermón Oxfam, 2007
(Tradução e adaptação)
Era um dia abrasador e Sofia não conseguia abrir os olhos naquela luz tão intensa. No ar pairava uma quietude quando, de repente, se ouviu um ruído semelhante ao zumbido de um enxame de abelhas, que aumentava cada vez mais. O porco começou a grunhir e as galinhas a cacarejarem. Sofia queria perceber o que se passava e, sentada direita como um pau de vassoura, pôs-se à escuta. "Deve ser a carrinha do homem dos números", pensou ela enquanto esfregava os olhos.
Uma vez por ano, um homem da cidade chegava à aldeia numa carrinha vermelha. A gente da aldeia dizia que era o homem dos números. O homem contava as pessoas da aldeia a mando do governo. Depois de fazer o seu percurso, o homem parou defronte da casa de Sofia.
— Quantas pessoas vivem aqui? — perguntou.
— Duas — respondeu Sofia, — a minha mãe e eu.
— Vejamos, assim dá um total de 154 pessoas. O ano passado eram…
O homem dos números tinha ouvido dizer que o pai de Sofia morrera porque não havia médico na aldeia e não havia nenhum hospital por perto.
Sofia olhava fixamente para o calçado do homem.
— Ah! Nunca viste umas sapatilhas?
Sofia ficou ruborizada. O segredo, que acalentava há tanto tempo, ocupou-lhe por inteiro o pensamento, que voou para tão longe como os falcões voam em grandes círculos no azul dos céus. No fundo do coração Sofia sentia que, se algum dia tivesse umas sapatilhas iguais às daquele homem, o seu desejo se transformaria em realidade.
— Vamos até à margem do rio? — disse o homem dos números. — Põe os pés nessa lama de barro fino. Agora sai!
Sofia gostou da sensação do barro a escorrer por entre os dedos dos pés. O homem tirou a régua do bolso das calças e mediu as marcas dos pés de Sofia. Enquanto coçava a barba, fazia contas em voz alta e acabou por dizer:
— Vejamos… dentro de trinta dias vais receber um presente.
Sofia contava os dias… Algum tempo depois, a carrinha dos correios atravessou a aldeia e deixou-lhe na porta de casa um pacote. Depois de sofregamente abrir o pacote, gritou:
— Umas sapatilhas!
Calçou-as com muito cuidado e exclamou:
— Agora, já posso realizar o meu desejo secreto!
— Que desejo? — perguntou a mãe.
— Agora já posso ir à escola, mãe!
— Mas, minha querida, a escola fica a oito quilômetros e o caminho é muito mau!
— Eu sei, mãe, mas é que eu agora tenho umas sapatilhas… — respondeu Sofia enquanto saltitava de alegria.
Um sorriso começou a desenhar-se lentamente na boca da mãe de Sofia. Recordou a filha de vestido amarelo, cor do sol, a correr ao lado do pai que, com a pequena lousa preta debaixo do braço, procurava a sombra de um coqueiro. Recordava a filha, de olhar fixo e sem pestanejar, a olhar a lousa onde o pai fazia sarrabiscos a que chamava letras: "Este aqui é o teu nome e este é o nome da nossa aldeia", ensinava ele à Sofia.
— Creio que podes ir à escola — disse então a mãe à Sofia.
No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido e já Sofia comia uma tigela de arroz com peixe salgado e se punha a caminho através dos arrozais. As sapatilhas protegiam-na das pedras aguçadas. E corria como se tivesse asas nos pés!
Com um salto atravessou riachos e percorreu uma estrada deserta, onde só passava um carro de longe a longe. Sofia corria e corria, cada vez mais depressa, até que por fim avistou a escola que tinha apenas uma sala de aula.
As sandálias dos alunos estavam, em fila alinhada, junto à porta da entrada. Sofia tirou rapidamente as sapatilhas, colocou-as junto às outras sandálias e entrou descalça na sala de aula.
— O meu nome é Sofia e venho à escola para aprender a ler e a escrever!
Na sala, onde havia só rapazes, começaram logo os risinhos.
— Silêncio! — disse a professora, colocando o dedo sobre os lábios fechados.
— Vem cá, és muito bem-vinda. Diz-me, de onde vens?
— De Andong Kralong.
A professora, apanhada de surpresa, disse em surdina:
— Mas, essa aldeia fica a oito quilômetros daqui!…
— Pois fica, senhora professora, mas eu tenho as minhas sapatilhas!
Os rapazes continuavam com as suas risadinhas, tapando a boca com as mãos. Os olhos da Sofia encheram-se de lágrimas.
— Mas, tu és uma moça! — sussurrou um dos alunos.
Sofia engoliu toda a raiva que sentia e manteve-se de cabeça erguida e quieta como a serpente antes de atacar a presa. Em breve chegaria o momento da desforra.
Acabada a aula, Sofia calçou as sapatilhas e atou os seus cordões, com um triplo nó. Então, virou-se para os rapazes, olhou-os de frente e disse:
— Já que são tão espertos, venham agarrar-me!
Os rapazes, empurrando-se uns aos outros, logo desataram a correr atrás dela. Em vão.
Na manhã seguinte, Sofia acordou antes do cantar do galo. Sair tão cedo permitiu que fosse a primeira a chegar à escola. Os rapazes iam chegando de sorriso envergonhado… É que ainda não tinham esquecido a derrota, na corrida da véspera. E, a partir daquele dia, Sofia aprendeu muito naquela escola de uma única sala.
Passou um ano. Uma manhã, Sofia estava sentada junto da mãe quando, de repente, se levantou uma nuvem de poeira na encosta. O porco começou a grunhir. As galinhas a cacarejarem. Era o homem dos números que voltava na sua carrinha vermelha.
Nesse momento, as primeiras gotas de chuva começaram a formar pequenos círculos na superfície da água do rio, círculos que se alargavam cada vez mais. Começava a monção. Sofia olhou as nuvens que se formavam e pensou que, agora, iria ter menos calor a caminho da escola.
O homem dos números contou as pessoas da aldeia e, ao fim do dia, chegou a casa de Sofia. E olhou para os pés nus da menina.
— Onde estão as tuas sapatilhas? — perguntou.
Sofia sorriu e, com ar de desafio e mãos na cintura, disse:
— Só calço as minhas sapatilhas para ir à escola.
E os dois começaram a rir.
— Hoje, eu quero mostrar-lhe uma coisa — disse Sofia. — Venha comigo, por favor.
Caminharam juntos e em silêncio, até à margem do rio. Chegados aí, Sofia, de cabeça baixa, disse timidamente:
— Um dia, quero construir uma escola na minha aldeia, e…
— O quê?
— Também quero ser professora — afirmou Sofia.
Pegou numa cana de bambu e agarrando-a com as duas mãos, escreveu na lama de argila:
Muito obrigada pelas sapatilhas.
Agora, já sei ler e escrever.
E fez-se um tal silêncio que se podia ouvir o borbulhar da água a correr por entre os seixos.
Frederick Lipp
Las zapatillas deportivas de Sofía
Barcelona, Intermón Oxfam, 2007
(Tradução e adaptação)
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