— Vais gostar do
lugar quando lá chegares — disse o avô de Sam.
— Não vou, não — replicou Sam.
Mas Sam sabia que tinha de ir para a quinta de qualquer forma. Todos os alunos de Mrs Southerden iam. Além do mais, o avô tinha dito que ia ser bom para ele.
— Um rapaz da cidade como tu pode aprender muito numa quinta. Há sempre ar fresco e ovos frescos. Quem me dera ir eu mesmo. Não te esqueças de que voltas na sexta para os meus anos. Vamos fazer uma festa.
O avô disse-lhe adeus com a mão e Sam ficou a olhá-lo do seu assento ao fundo da camioneta até deixar de o ver. Ia estar fora uma semana inteira. Esforçou-se por não chorar.
A viagem até ao Devon era longa. As auto-estradas deram lugar às estradas, as estradas aos caminhos. Eram caminhos estreitos com relva pelo meio. De repente, surgiu uma casa enorme, como se fosse um palácio, rodeada de campos verdes e árvores por todo o lado.
— Chegámos a Nethercott — anunciou Mrs Southerden, que ia na parte da frente da camioneta. — O que é que vocês são a partir de agora?
— Agricultores! — gritaram os alunos em coro.
E assim foi. Levantavam-se de madrugada para mugir vacas, alimentar cavalos, porcos e vitelos. E os carneiros também tinham de ser alimentados. Isto tudo antes do pequeno almoço, que consistia em papas de aveia quentes, ovos mexidos e tantas torradas quantas quisessem.
Havia estábulos para limpar, galinhas, patos e gansos para soltar, ovos para ir buscar. Havia também um touro, mas não era permitido ir até junto dele, não fosse acontecer alguma coisa.
Sam nem tinha tempo para ter saudades do avô. Trabalhavam durante a tarde toda e nunca conseguiam acabar as tarefas. As vacas tinham de ser mugidas ao fim do dia outra vez, o que dava uma enorme trabalheira!
Os cordeirinhos eram levados para os celeiros à noite, os porcos eram alimentados, os cavalos tratados, e as galinhas, os patos e os gansos recolhidos, para o caso de a raposa vir por ali, feita matreira.
Sam trabalhava arduamente, comia como um rei, e dormia a sono solto. Os agricultores eram amáveis e sorridentes, sobretudo o velho jardineiro, que levava os legumes à cozinha. Tinha cabelo prateado como o avô de Sam.
O rapaz estava a adorar aqueles dias. Mesmo quando tinha de limpar estábulos fedorentos ou tirar as pedras dos campos para que o milho pudesse crescer na Primavera.
Mas o melhor de tudo era quando ajudava um cordeirinho a nascer. Quando o trazia, quente e úmido, de dentro da mãe, para o ar gelado do dia. Via-o respirar pela primeira vez, dar os primeiros passos, beber o primeiro leite. Tinha tantas coisas para contar ao avô.
Só a Lisa não gostava do que estavam a fazer. Mrs Southerden chamava-lhe "Mona Lisa". Tinha-se queixado durante a semana toda: "Doem-me os pés". "Doem-me as costas". "Está frio".
Às terças, era dia de mercado. Foi a primeira coisa de que Sam não gostou. No lugar dos leilões, estava um homem de cara vermelha, que torcia as caudas dos vitelos para os fazer mexer. Chegava mesmo a dar-lhes pontapés e ria sem parar.
O rapaz nem conseguia olhar para ele e decidiu ir para junto dos patos e das galinhas, que se amontoavam no fundo das gaiolas. Havia um pato, branquinho como a neve, que estava mesmo junto ao arame da gaiola e que grasnou para ele. Sam tocou as suas penas suaves com o dedo.
— Fora daqui! — gritou o homem de cara vermelha. — Estás a olhar para o meu jantar!
E pegou no animal pelas patas.
— Não vai comê-lo! Não pode! — gritou Sam, aflito.
— Tens uma ideia melhor? — perguntou o homem a rir.
Sam nem pensou duas vezes.
— Posso comprá-lo. Tenho duas libras — disse, tirando o dinheiro todo do bolso.
— Negócio fechado! — concordou o homem.
Pegou no dinheiro e deixou o patinho nos braços de Sam. O que iria fazer com ele? O que diria Mrs Southerden? Meteu-o depressa no seu saco de desporto.
— Não grasnes, por favor! — sussurrou.
Enquanto se dirigia para Nethercott, ia pensando no que havia de fazer. Caminhava afastado dos outros, por precaução. Só havia um lugar para o esconder. Na cabana da horta. Com um pouco de sorte e cautela, ninguém daria por nada.
O pato olhou em volta e pareceu gostar do lugar.
— Vais precisar de palha para a tua cama e de comida — disse-lhe o rapaz.
— E de água — disse uma voz atrás dele.
Era o velho jardineiro.
— Os patos precisam de água. Onde o arranjaste?
— No mercado. O dono ia matá-lo.
— Eis algo que não está certo, pois não? Tenho sandes e leite. Achas que chega?
Alimentaram-no juntos.
— É um macho — disse o jardineiro. — Vamos chamar-lhe Francis, como o famoso navegador, Francis Drake?
— Ninguém sabe que o tenho — disse Sam.
— Podes contar comigo — prometeu o velho jardineiro.
Durante o resto da semana, as crianças trabalharam arduamente na quinta e nenhuma suspeitava de que Sam tinha um segredo.
Na última noite, fizeram uma fogueira crepitante e todos cantaram canções e comeram muitas salsichas. O rapaz esgueirou-se para estar com o pato e com o velho jardineiro.
— O que vais fazer com ele?
Sam tinha pensado nisso o dia todo.
— Vou dá-lo ao meu avô como prenda de anos. Faz setenta anos amanhã.
— Então é da minha idade. É um homem de sorte por ter um neto como tu.
Na manhã seguinte, o velho jardineiro estava à espera na cabana. Juntos, colocaram o pato no fundo do saco de desporto de Sam.
— Boa sorte! — desejou-lhe o jardineiro.
Sam correu para a camioneta porque queria apanhar o lugar de trás, mesmo ao canto. Era o lugar mais seguro. Se Francis grasnasse uma vez que fosse, estava feito. Acenou para o jardineiro até deixar de o ver.
Pararam apenas uma vez, para almoçar.
— Toda a gente para fora da camioneta — ordenou Mrs Southerden.
Sam não queria deixar o saco dentro da camioneta, mas Mrs Southerden obrigou-o. Quando acabou de almoçar, correu até ao lugar. Mas a "Mona Lisa" já lá estava.
— Ouvi grasnar — disse. — Tens um pato. Vou contar a toda a gente.
Foi a correr até junto da professora.
— Professora, o Sam tem um pato no saco!
Num ápice, Sam pegou em Francis e pô-lo dentro do casaco.
— Não sejas pateta — pediu Mrs Southerden. — Tens-te portado mal toda a semana. E agora até inventas histórias. Vem sentar-te à frente, junto dos que enjoam.
— Mas, Professora — continuou Lisa — é verdade. Ele tem mesmo um pato. Todos olharam para Sam, que encolheu os ombros e virou o saco do avesso para que todos pudessem ver. Lisa abriu e fechou a boca, repetidas vezes, como um peixe de aquário. Sam sorriu com doçura, mas o caminho até casa custou a passar.
Estava morto por ver o avô. Quando chegaram, correu logo para os degraus do apartamento. Obrigou o avô a sentar-se, com os olhos fechados, enquanto punha um banho a correr para Francis. Depois chamou o avô.
— É para ti, avô. Feliz aniversário.
E contou-lhe tudo o que acontecera com o homem de cara vermelha no mercado e com o velho jardineiro em Nethercott.
— É um pato amoroso — disse o avô, abanando a cabeça. — Mas não podemos mantê-lo num andar. Não é justo.
— Porque não?
— Escuta, Sam, um pato precisa de um lago. Também precisa de amigos, como tu e eu precisamos. E precisa de liberdade.
O neto tentou persuadir o avô toda a noite. Em vão.
— Falaremos outra vez amanhã de manhã. Agora vai dormir.
Na manhã seguinte, o avô acordou-o cedo.
— O que se passa? — perguntou Sam.
— Logo verás — disse o avô.
Levaram Francis no saco de desporto. O pato tinha a cabeça de fora, mas não havia ninguém na rua.
— Onde vamos? — perguntou Sam.
— Já vais ver — respondeu o avô, com um brilho no olhar.
Caminhavam pelo parque, por entre a neblina da manhã, quando, de repente, Francis grasnou. E logo muitos outros patos puseram-se a grasnar também. Diante de si, Sam podia ver um grande lago cheio de patos a nadar em direção a eles. Também havia gansos, galinholas e cisnes.
Baixaram-se junto ao lago e puseram Francis na água. Este acomodou-se, bateu as asas, abanou a cabeça e dirigiu-se para junto dos seus novos amigos.
— Bem, o que me dizes? — perguntou o avô a Sam.
— Penso que podemos vir dar-lhe de comer, não podemos? — retorquiu Sam.
— Sempre que quiseres — respondeu o avô. — Olha para ele, Sam. É um pato muito feliz e eu também sou um homem muito feliz.
Michael Morpurgo
Sam’s Duck
London, Harper Collins, 1997
(Tradução e adaptação)
— Não vou, não — replicou Sam.
Mas Sam sabia que tinha de ir para a quinta de qualquer forma. Todos os alunos de Mrs Southerden iam. Além do mais, o avô tinha dito que ia ser bom para ele.
— Um rapaz da cidade como tu pode aprender muito numa quinta. Há sempre ar fresco e ovos frescos. Quem me dera ir eu mesmo. Não te esqueças de que voltas na sexta para os meus anos. Vamos fazer uma festa.
O avô disse-lhe adeus com a mão e Sam ficou a olhá-lo do seu assento ao fundo da camioneta até deixar de o ver. Ia estar fora uma semana inteira. Esforçou-se por não chorar.
A viagem até ao Devon era longa. As auto-estradas deram lugar às estradas, as estradas aos caminhos. Eram caminhos estreitos com relva pelo meio. De repente, surgiu uma casa enorme, como se fosse um palácio, rodeada de campos verdes e árvores por todo o lado.
— Chegámos a Nethercott — anunciou Mrs Southerden, que ia na parte da frente da camioneta. — O que é que vocês são a partir de agora?
— Agricultores! — gritaram os alunos em coro.
E assim foi. Levantavam-se de madrugada para mugir vacas, alimentar cavalos, porcos e vitelos. E os carneiros também tinham de ser alimentados. Isto tudo antes do pequeno almoço, que consistia em papas de aveia quentes, ovos mexidos e tantas torradas quantas quisessem.
Havia estábulos para limpar, galinhas, patos e gansos para soltar, ovos para ir buscar. Havia também um touro, mas não era permitido ir até junto dele, não fosse acontecer alguma coisa.
Sam nem tinha tempo para ter saudades do avô. Trabalhavam durante a tarde toda e nunca conseguiam acabar as tarefas. As vacas tinham de ser mugidas ao fim do dia outra vez, o que dava uma enorme trabalheira!
Os cordeirinhos eram levados para os celeiros à noite, os porcos eram alimentados, os cavalos tratados, e as galinhas, os patos e os gansos recolhidos, para o caso de a raposa vir por ali, feita matreira.
Sam trabalhava arduamente, comia como um rei, e dormia a sono solto. Os agricultores eram amáveis e sorridentes, sobretudo o velho jardineiro, que levava os legumes à cozinha. Tinha cabelo prateado como o avô de Sam.
O rapaz estava a adorar aqueles dias. Mesmo quando tinha de limpar estábulos fedorentos ou tirar as pedras dos campos para que o milho pudesse crescer na Primavera.
Mas o melhor de tudo era quando ajudava um cordeirinho a nascer. Quando o trazia, quente e úmido, de dentro da mãe, para o ar gelado do dia. Via-o respirar pela primeira vez, dar os primeiros passos, beber o primeiro leite. Tinha tantas coisas para contar ao avô.
Só a Lisa não gostava do que estavam a fazer. Mrs Southerden chamava-lhe "Mona Lisa". Tinha-se queixado durante a semana toda: "Doem-me os pés". "Doem-me as costas". "Está frio".
Às terças, era dia de mercado. Foi a primeira coisa de que Sam não gostou. No lugar dos leilões, estava um homem de cara vermelha, que torcia as caudas dos vitelos para os fazer mexer. Chegava mesmo a dar-lhes pontapés e ria sem parar.
O rapaz nem conseguia olhar para ele e decidiu ir para junto dos patos e das galinhas, que se amontoavam no fundo das gaiolas. Havia um pato, branquinho como a neve, que estava mesmo junto ao arame da gaiola e que grasnou para ele. Sam tocou as suas penas suaves com o dedo.
— Fora daqui! — gritou o homem de cara vermelha. — Estás a olhar para o meu jantar!
E pegou no animal pelas patas.
— Não vai comê-lo! Não pode! — gritou Sam, aflito.
— Tens uma ideia melhor? — perguntou o homem a rir.
Sam nem pensou duas vezes.
— Posso comprá-lo. Tenho duas libras — disse, tirando o dinheiro todo do bolso.
— Negócio fechado! — concordou o homem.
Pegou no dinheiro e deixou o patinho nos braços de Sam. O que iria fazer com ele? O que diria Mrs Southerden? Meteu-o depressa no seu saco de desporto.
— Não grasnes, por favor! — sussurrou.
Enquanto se dirigia para Nethercott, ia pensando no que havia de fazer. Caminhava afastado dos outros, por precaução. Só havia um lugar para o esconder. Na cabana da horta. Com um pouco de sorte e cautela, ninguém daria por nada.
O pato olhou em volta e pareceu gostar do lugar.
— Vais precisar de palha para a tua cama e de comida — disse-lhe o rapaz.
— E de água — disse uma voz atrás dele.
Era o velho jardineiro.
— Os patos precisam de água. Onde o arranjaste?
— No mercado. O dono ia matá-lo.
— Eis algo que não está certo, pois não? Tenho sandes e leite. Achas que chega?
Alimentaram-no juntos.
— É um macho — disse o jardineiro. — Vamos chamar-lhe Francis, como o famoso navegador, Francis Drake?
— Ninguém sabe que o tenho — disse Sam.
— Podes contar comigo — prometeu o velho jardineiro.
Durante o resto da semana, as crianças trabalharam arduamente na quinta e nenhuma suspeitava de que Sam tinha um segredo.
Na última noite, fizeram uma fogueira crepitante e todos cantaram canções e comeram muitas salsichas. O rapaz esgueirou-se para estar com o pato e com o velho jardineiro.
— O que vais fazer com ele?
Sam tinha pensado nisso o dia todo.
— Vou dá-lo ao meu avô como prenda de anos. Faz setenta anos amanhã.
— Então é da minha idade. É um homem de sorte por ter um neto como tu.
Na manhã seguinte, o velho jardineiro estava à espera na cabana. Juntos, colocaram o pato no fundo do saco de desporto de Sam.
— Boa sorte! — desejou-lhe o jardineiro.
Sam correu para a camioneta porque queria apanhar o lugar de trás, mesmo ao canto. Era o lugar mais seguro. Se Francis grasnasse uma vez que fosse, estava feito. Acenou para o jardineiro até deixar de o ver.
Pararam apenas uma vez, para almoçar.
— Toda a gente para fora da camioneta — ordenou Mrs Southerden.
Sam não queria deixar o saco dentro da camioneta, mas Mrs Southerden obrigou-o. Quando acabou de almoçar, correu até ao lugar. Mas a "Mona Lisa" já lá estava.
— Ouvi grasnar — disse. — Tens um pato. Vou contar a toda a gente.
Foi a correr até junto da professora.
— Professora, o Sam tem um pato no saco!
Num ápice, Sam pegou em Francis e pô-lo dentro do casaco.
— Não sejas pateta — pediu Mrs Southerden. — Tens-te portado mal toda a semana. E agora até inventas histórias. Vem sentar-te à frente, junto dos que enjoam.
— Mas, Professora — continuou Lisa — é verdade. Ele tem mesmo um pato. Todos olharam para Sam, que encolheu os ombros e virou o saco do avesso para que todos pudessem ver. Lisa abriu e fechou a boca, repetidas vezes, como um peixe de aquário. Sam sorriu com doçura, mas o caminho até casa custou a passar.
Estava morto por ver o avô. Quando chegaram, correu logo para os degraus do apartamento. Obrigou o avô a sentar-se, com os olhos fechados, enquanto punha um banho a correr para Francis. Depois chamou o avô.
— É para ti, avô. Feliz aniversário.
E contou-lhe tudo o que acontecera com o homem de cara vermelha no mercado e com o velho jardineiro em Nethercott.
— É um pato amoroso — disse o avô, abanando a cabeça. — Mas não podemos mantê-lo num andar. Não é justo.
— Porque não?
— Escuta, Sam, um pato precisa de um lago. Também precisa de amigos, como tu e eu precisamos. E precisa de liberdade.
O neto tentou persuadir o avô toda a noite. Em vão.
— Falaremos outra vez amanhã de manhã. Agora vai dormir.
Na manhã seguinte, o avô acordou-o cedo.
— O que se passa? — perguntou Sam.
— Logo verás — disse o avô.
Levaram Francis no saco de desporto. O pato tinha a cabeça de fora, mas não havia ninguém na rua.
— Onde vamos? — perguntou Sam.
— Já vais ver — respondeu o avô, com um brilho no olhar.
Caminhavam pelo parque, por entre a neblina da manhã, quando, de repente, Francis grasnou. E logo muitos outros patos puseram-se a grasnar também. Diante de si, Sam podia ver um grande lago cheio de patos a nadar em direção a eles. Também havia gansos, galinholas e cisnes.
Baixaram-se junto ao lago e puseram Francis na água. Este acomodou-se, bateu as asas, abanou a cabeça e dirigiu-se para junto dos seus novos amigos.
— Bem, o que me dizes? — perguntou o avô a Sam.
— Penso que podemos vir dar-lhe de comer, não podemos? — retorquiu Sam.
— Sempre que quiseres — respondeu o avô. — Olha para ele, Sam. É um pato muito feliz e eu também sou um homem muito feliz.
Michael Morpurgo
Sam’s Duck
London, Harper Collins, 1997
(Tradução e adaptação)
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