Penso que, de tudo o
que as escolas podem fazer com as crianças e os jovens, não há nada de importância
maior que o ensino do prazer da leitura. Todos falam na importância de
alfabetizar, saber transformar símbolos gráficos em palavras. Concordo. Mas isso
não basta. É preciso que o ato de ler dê prazer. As escolas produzem,
anualmente, milhares de pessoas com habilidade de ler mas que, vida afora, não
vão ler um livro sequer. Acredito piamente no dito do evangelho: "No
princípio está a Palavra…". É pela palavra que se entra no mundo humano.
Tive a felicidade de
aprender, muito cedo, a amar os livros. Lembro-me com enorme carinho do O
livro de Lili, primeiro livro que li. "Olhem para mim. Eu me chamo
Lili. Eu comi muito doce.
Vocês gostam de
doce? Eu gosto tanto de doce." Nunca me esqueci dessa primeira lição.
Ficou gravada tão fundo dentro de mim que, faz uns meses, ao escrever o livro
infantil A menina, a gaiola e a bicicleta1 a história me foi ditada (poesia e
literatura são sempre ditadas; elas vêm de outro mundo) com ritmo preciso da
primeira lição de O livro de Lili.
O segundo livro foi
minha grande aventura, voo solo, sozinho, no mundo das letras: A loja de brinquedos2.
Era fantástica a experiência de, sozinho, ir andando pela floresta de letras e
vendo um mundo. Quem não lê é cego. Só vê o que os olhos veem. Quem lê,
ao contrário, tem muitos milhares de olhos: todos os olhos daqueles que
escreveram. A leitura me deu alegria, mas a história me deu tristeza.
Tanto assim que, 55 anos depois, eu escrevi um outro, A loja de brinquedos,
para corrigir a tristeza do primeiro.
Aprendi a ler. Mas
isso não bastava. Faltava-me o domínio da técnica que faz da leitura algo suave
como o voo de um urubu ou deslizante como um patim no gelo. Foi dona Iva — não
sei se ela ainda vive — quem me ensinou que ler pode ser delicioso como voar ou
como patinar. Ela lia para nós. Não era para aprender nada. Não havia provas
sobre os livros lidos. Ela lia para que tivéssemos o prazer dos livros. Era
pura alegria. Poliana, Heidi, Viagem ao céu, O saci.
Ninguém faltava,
ninguém piscava. A voz de dona Iva nos introduziu num mundo encantado.
O tempo passava rápido
demais. Era com tristeza que víamos a professora fechar o livro.
A gente era pobre.
Distrações não havia. Os jovens de hoje se sentem miseráveis se não podem viajar
nas férias. Eu nunca viajei. Viagem, na melhor das possibilidades, era para a
casa de algum parente. A gente ficava era em casa mesmo, com um tempo
preguiçoso e vazio à nossa frente.
Que fazer com o
tempo? Meu pai entrou de sócio para um "clube do livro". Todo mês
chegava um livro novo. Eram uns livros feios — brochuras de papel jornal, as
páginas vinham grudadas — que a gente tinha que ir abrindo com uma faca à
medida que lia. Isso me irritava porque interrompia o ritmo da leitura. Como eu
não tinha outra coisa para fazer e desejando ter os poderes da professora,
tornei-me um devorador de livros. Os livros do clube do livro eram literatura
adulta. Mas para mim não fazia diferença. Ler um livro que eu não entendia era
como viajar por uma terra cuja língua me era desconhecida: perdia muita coisa
mas, nos intervalos das incompreensões, havia os cenários. Tudo me espantava.
As razões por que as
pessoas não gostam de ler, eu as descobri acidentalmente muitos anos atrás. Uma
aluna foi à minha sala e me disse: "Encontrei um poema lindo!". Em
seguida disse a primeira linha. Fiquei contente porque era um de meus
favoritos. Aí ela resolveu lê-lo inteiro.
Foi o horror. Foi
nesse momento que compreendi. Imagine uma valsa de Chopin, por exemplo a
vulgarmente chamada "do minuto". Peço que o pianista Alexander Brailowiski
a execute. Os dedos correm rápidos sobre as teclas, deslizando, subindo, descendo.
É uma brincadeira, um riso. Aí eu pego a mesma partitura e peço que um pianeiro
a execute. As notas são as mesmas. Mas a valsa fica um horror: tropeções, notas
erradas, arritmias, confusões. O que a gente deseja é que ele pare.
Pois a leitura é igual
à música. Para que a leitura dê prazer é preciso que quem lê domine a técnica de
ler. A leitura não dá prazer quando o leitor é igual ao pianeiro: sabem juntar
as letras, dizer o que significam — mas não têm o domínio da técnica. O
pianista dominou a técnica do piano quando não precisa pensar nos dedos e nas
notas: ele só pensa na música. O leitor dominou a técnica da leitura quando não
precisa pensar em letras e palavras: só pensa nos mundos que saem delas; quando
ler é o mesmo que viajar.
E o feitiço da
leitura continua me espantando. Faz uns anos um amigo rico me convidou para
passar uns dias no apartamento dele em Cabo Frio. Aceitei alegre, mas ele logo
me advertiu: "Vão também cinco adolescentes…". Senti um calafrio. E
tratei de me precaver. Fui a uma casa de armas, isto é, uma livraria, escolhi
uma arma adequada, uma versão simplificada da Odisseia, de
Homero, comprei-a e
viajei, pronto para o combate. Primeiro dia, praia, almoço, modorra, sesta.
Depois da sesta,
aquela situação de não saber o que fazer. Foi então que eu, valendo-me do fato de
que eles não me conheciam, e falando com a autoridade de um sargento, disse:
"Ei, vocês aí. Venham até a sala que eu quero lhes mostrar uma
coisa!". Eles obedeceram sem protestar.
Aí, comecei a
leitura. Não demorou muito. Todos eles estavam em transe. Daí para a frente foi
aquela delícia, eles atrás de mim pedindo que continuasse a leitura.
Ensina-se, nas
escolas, muita coisa que a gente nunca vai usar, depois, na vida inteira. Fui
obrigado a aprender muita coisa que não era necessária, que eu poderia ter
aprendido depois, quando e se a ocasião e sua necessidade o exigisse. É como
ensinar a arte de velejar a quem mora no alto das montanhas… Nunca usei seno ou
logaritmo, nunca tive oportunidade de usar meus conhecimentos sobre as causas
da Guerra dos Cem Anos, nunca tive de empregar os saberes da genética para
determinar a prole resultante do cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos,
nunca houve ocasião que eu me valesse dos saberes sobre sulfetos. Mas aquela
experiência infantil, a professora nos lendo literatura, isso mudou minha vida.
Ao ler — acho que ela nem sabia disso — ela estava me dando a chave de abrir o
mundo.
Há concertos de
música. Por que não concertos de leitura? Imagino uma situação impensável: o adolescente
se prepara para sair com a namorada, e a mãe lhe pergunta: "Aonde é que
você vai?".
E ele responde:
"Vou a um concerto de leitura. Hoje, no teatro, vai ser lido o conto A
terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Por que é que você não vai
também com o pai?". Aí, pai e mãe, envergonhados, desligam o Jornal
Nacional e vão se aprontar…
Rubem Alves
Extraido de: Entre
a ciência e a sapiência - o dilema da educação, São Paulo, Editorial
Loyola, 1996.
Companhia das
Letras, 1998. Edições Loyola, 1994. Ediouro, s.d. Outlet Books, 1996 Monteiro
Lobato, Brasiliense, 1995.
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