A grande ideia de Emília não deixou mais a cabeça de Pedrinho. Só
pensava em ir à Itália, ver se no quintal do homem que fez o Pinóquio não
existiria ainda um resto do tal pau. Mas ir como? A pé não podia ser, porque
era muito longe e teria de atravessar o oceano. De navio também não, porque
dona Benta tinha um medo horrível de naufrágios e jamais consentiria que ele
embarcasse.
Como resolver o problema? Desta
vez foi o Visconde quem teve a melhor idéia. Esse sábio estava ficando cada vez
mais sabido, depois da temporada que passou atrás da estante, entalado entre
uma Álgebra e uma Aritmética. Por isso só falava cientificamente, isto é, de um
modo que tia Nastácia não entendia.
— Eu acho — observou ele
cuspindo um pigarrinho – que não é preciso ir à Itália para descobrir madeira
com “propriedades pinoquianas”. A Natureza é a mesma em toda parte; e se lá há
disso, não vejo razão plausível para que não o haja aqui também. Logo, se você
procurar, bem procurado, é possível que descubra em nossas matas algum
“exemplar esporádico da mirífica substância”.
Tia Nastácia, que naquele
momento ia passando de trouxa de roupa à cabeça, parou, escutou o discurso, de
olhos arregalados, e lá se foi, resmungando: “Que mania essa do Visconde de só
falar inglês agora! Credo!” Para a boa negra, tudo que ela não entendia era
inglês. Mas Pedrinho compreendeu perfeitamente e até se entusiasmou com o que o
sábio disse.
— Boa ideia, não há dúvida. Vou
amolar meu machadinho e amanhã cedo começarei as “investigações”.
E assim fez. No dia seguinte,
logo depois do café botou o machadinho ao ombro e partiu para a floresta
disposto a picar todos os paus por lá existentes até encontrar um que desse
sinais de vida.
A semana inteira passou naquilo.
Não deixava escapar uma só árvore. Golpeava-as todas, e aplicava o ouvido ao
tronco para ver se gemia. Muitas choraram lágrimas de resina, mas gemer nenhuma
gemeu durante todo aquele tempo.
— Acho que estou fazendo papel
de bobo — disse ele um dia ao voltar. — Pau de Pinóquio só mesmo na Itália. A ideia do Visconde está me parecendo como o nariz dele.
Ouvindo-o dizer aquilo, Emília
ficou de pulga atrás da orelha. Pôs-se a refletir que se o menino não achasse
pau vivente, era capaz de lhe tomar o cavalinho, alegando que sua ideia também
era como o nariz de alguém. Pensou, pensou, pensou e por fim concebeu um plano.
Foi procurar o Visconde e disse-lhe:
— Largue esse livro (era uma
álgebra) e diga-me uma coisa: o senhor Visconde sabe gemer?
— Nunca gemi — respondeu o
sábio, estranhando a pergunta — mas não creio que seja muito difícil.
— Então gema um pouquinho para
eu ver.
O Visconde, com uma careta muito
feia, gemeu em vários tons o melhor que pôde.
— Muito bem — aprovou a boneca.
— Sabe gemer, sim, e nesse caso preciso que me preste um grande serviço,
Presta?
O velho sábio parece que tinha
alguma paixão oculta pela boneca, pois se apressou a fazer uma mesura e a
declarar, todo deslambido:
— Dona Emília manda, não pede.
— Pois então venha comigo.
E Emília, sem mais cerimônias,
levou-o a certo lugar no campo, para lá da porteira, onde havia um velho tronco
de pau caído à beira da estrada. Parou naquele ponto e disse:
— Pedrinho tem o costume de
passar por aqui quando volta da mata onde anda procurando o pau vivente. E como
está que não pode passar por perto de pau nenhum sem dar um golpe, já estou
vendo o jeitinho dele: chega, para e — pá! machadada neste tronco. Pois bem,
vosmecê vai ficar escondido aqui neste oco de pau; assim que ele chegar, parar
e der o golpe, vosmecê vai gemer – mas gemer bem gemido, com voz rouca de pau
velho, está entendendo?
— Mas para que isso? — atreveu-se
o sábio a perguntar.
— Não é da sua conta, Visconde.
Faça o que estou dizendo e não discuta.
Nisto Pedrinho apontou lá longe,
de machadinho ao ombro.
— Depressa! Depressa, Visconde!
— disse Emília, empurrando o sábio para dentro do oco. — Ele vem vindo!…
O Visconde sumiu-se no oco e ela
correu para casa antes que o menino a visse por ali e desconfiasse.
Pedrinho chegou e fez como fora
previsto. Parou e — machadada. Mas fez aquilo por fazer, pela força do hábito,
porque já não tinha a menor esperança de encontrar pau vivente nenhum. Com
imensa surpresa sua, porém, o tronco gemeu. — ai! ai! ai! o que o fez dar um
pulo para trás como se tivesse pisado em uma cobra.
— Homessa! — exclamou,
arregalando os olhos. — Será possível que este tronco tenha gemido ou foi
ilusão minha?
Para certificar-se deu novo
golpe, mas de longe, meio ressabiado.
— Ai! ai! ai! — gemeu novamente
o tronco. Embora andasse já por uma semana a procurar aquilo, Pedrinho ficou
seriamente impressionado com o milagre e sem ânimo de meter o machado no pau
para cortar o pedaço necessário à fabricação do boneco. Teve de ir ao riacho
que corria perto beber uns goles d’água, que lhe acalmassem a agitação e lhe
dessem coragem. A água fez efeito.
Pedrinho criou ânimo e, apesar
do pau continuar a gemer, cortou dele um bom pedaço, voltando para casa a
correr, na maior alegria de sua vida.
Ao penetrar no terreiro deu com
a boneca sentadinha na soleira da porta, assobiando o “Pirulito que bate bate”
com a cara mais inocente deste mundo.
— Achei, Emília! — gritou o
menino de longe.
E ela, com a maior indiferença:
— Que é que você achou,
Pedrinho?
— O pau vivente, ora essa! Que é
que havia de achar se é só isso que ando procurando?
— Nesse caso, bom proveito! —
murmurou a sonsa, sem erguer os olhos e a fingir que estava cavoucando o chão
com um pauzinho.
O menino danou. Disse-lhe um
desaforo e entrou em casa como um pé-de-vento, ansioso por contar a história
dos gemidos.
— Vocês não imaginam que coisa
mais espantosa! — gritou quase sem fôlego logo que todos o rodearam. — O pau
gemia que nem gente de carne e osso — ai! ai! ai! numa voz que lembrava um
pouco a do Visconde. Gemia de cortar o coração! Nunca imaginei que pudesse
haver uma coisa assim no mundo! Um assombro!…
Pedrinho teve de repetir a
história uma porção de vezes, enquanto o maravilhoso pedaço de pau corria de
mão em mão, apalpado, cheirado, provado com a ponta da língua. Só tia Nastácia
não teve coragem de chegar perto. Espiou de longe — e nunca fez tantos
pelos-sinais nem murmurou tantos credos.
Todos comentavam, menos o
Visconde e a boneca. O Visconde fingia-se absorvido na leitura do seu livro de
Álgebra, mas na realidade estava observando a cena com o rabo dos olhos; de vez
em quando dava sua risadinha. E Emília, essa espiava pelo vão da porta; depois
saiu tapando a boca para abafar o riso, indo conversar com o seu cavalinho.
Botou-o ao colo e disse-lhe ao ouvido:
— Pedrinho caiu como um pato e
com certeza agora não se lembra mais de tomar você de mim. Viva! Viva! Você é
meu e bem meu, e tem que brincar comigo o dia inteiro. Antes de mais nada,
preciso consertar Vossa Senhoria, pois onde já se viu um cavalo sem rabo? Vou
arranjar para Vossa Cavalência um lindo rabo de galo, muito mais na moda que
esses rabos de cabelo com que os cavalos nascem, está ouvindo, Senhor Barão
Cavalgadura Cavalcanti Cavalete da Silva Feijó?
Estava aberta a célebre
torneirinha das asneiras — e aberta ficou durante todo o tempo em que Emília
deu voltas pelo terreiro em procura duma boa pena de galo que servisse de cauda
para o novo barão.
Continua… O Irmão de Pinóquio – III – O concurso
Continua… O Irmão de Pinóquio – III – O concurso
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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