Tia Nastácia fechara-se na cozinha para
fazer o boneco sossegadamente. Uma hora depois reapareceu com a obra-prima na
mão.
—
Pronto! Não ficou bonito, mas está muito simpático – disse ela, mostrando o
produto do seu engenho e arte.
Houve
um “Oh!” geral de decepção, porque realmente não se poderia imaginar coisa mais
feia, nem mais desajeitada. Os braços saíam do meio do corpo, quase; os pés não
tinham jeito de pés; o nariz era um fósforo cabeçudo espetado no meio da cara;
e a cabeça, em forma de castanha de caju, estava pregada nos ombros por meio de
um prego torto, cuja ponta aparecia nas costas. Pedrinho chegou a ficar danado.
—
Que vergonha, tia Nastácia! Você fez um monstro que não pode ser mostrado a
ninguém. Desmoraliza a família!
—
E o pau vivente gemeu muito quando você o cortou? – quis saber Narizinho.
—
Nada, nada! Não deu o menor sinal de vida. Mesmo que um pau de lenha à-toa.
—
É extraordinário! — observou Pedrinho. — Não posso compreender tal fenômeno. O
tronco gemeu de cortar o coração da gente, e no entanto este pedaço do tronco
não dá sinal de vida. Anda aqui um grande mistério !…
O
Visconde, que estava a ler a sua Álgebra, piscou mais de dez vezes ao ouvir
aquilo. Depois pediu a palavra e lembrou:
—
Deus deu vida ao primeiro homem fazendo um boneco de barro e assoprando. Por
que não experimenta o assopro, Pedrinho?…
—
Boa idéia! — exclamou Emília, que vinha entrando para reclamar o alfinete. —
Também acho que se você assoprar o João Faz-de-conta, bem assoprado, ele vive,
bem vivinho.
Todos
se voltaram para ela com caras de espanto.
—
Que João Faz-de-conta é esse, Emília? Você tem cada uma…
—
João Faz-de-conta é o melhor nome que acho para este boneco.
—
Por quê?
—
João, porque ele tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou menos
João. E Faz-de-conta, porque só mesmo fazendo de conta se pode admitir uma
feiúra desta. Faz de conta que não é feio. Faz de conta que não tem ponta de
prego nas costas. Faz de conta que…
—
Chega, Emília. Já está muito bem explicado – disse Narizinho com os olhos
postos no boneco. — Você tem razão. Não pode haver nome mais bem posto.
Todos
acharam a mesma coisa e classificaram a boneca como a melhor “botadeira de
nome” do sítio.
—
Nesse caso… — começou ela a dizer.
—
Já sei! — interrompeu Narizinho. — Nesse caso você quer aquele alfinete de
pombinha carijó de tia Nastácia, não é?
A
negra arregalou os olhos.
Narizinho
contou então o que se havia passado e de como por um triz Emília escapou de
cometer a maior imprudência de sua vida.
Tia
Nastácia não queria dar o alfinete, mas tanto a menina insistiu que afinal deu.
—
Tome lá, ciganinha! — disse ela tirando o alfinete do peito.
—
Não sei por quem você puxou esse espírito interesseiro. Estou vendo o dia em
que acaba pedindo os óculos e a dentadura de dona Benta. Credo!…
Emília
bateu palmas de alegria e foi correndo mostrar o alfinete ao cavalinho, que era
agora o seu grande amigo e confidente. Tinha-lhe posto um lindo rabo de pena de
galo e com ele passava horas, brincando de chicote queimado, esconde-esconde e
Bento-que-Bento-frade. Mas Emília não tinha sossego de espírito.
Como
houvesse enganado Pedrinho, receava que de um momento para outro ele
descobrisse o logro e lhe tomasse o querido brinquedo.
O
meio de evitar isso era Faz-de-conta viver. Mas o boneco teimava em
conservar-se morto como um defunto. Pedrinho, que havia achado certo fundamento
e na idéia do Visconde (a idéia do assopro), passara três dias a experimentar o
remédio, às escondidas, para que não caçoassem dele. Chegou a ficar com as
bochechas doloridas de tanto assopramento. Nada adiantou. Emília também
procurou meter o boneco em brios.
Chegou-se
a ele, num momento em que não estava ninguém perto, e disse:
—
Viva, bobo! Viva, se não Pedrinho bota você fora. Viva, que te dou aquele meu
aventalzinho vermelho que tem bolso.
Faz-de-conta,
porém, continuou impassível. Nem sacudidelas, nem ameaças, nem assopros, nem
promessas da boneca — nada o fazia sair do seu estúpido estado de
embezerramento.
Um
dia Pedrinho desesperou.
—
Basta! Basta! Basta! Já estou ficando bochechudo de tanto te assoprar e “tu não
vive” nunca, seu feiúra. Vai-te prós quintos! e, agarrando-o por uma perna, jogou-o
para cima do armário da sala de jantar.
Emília
assistiu à cena e percebeu que ia haver questão. Pedrinho lhe dera o cavalo em
troca da idéia, “se fosse boa”. Quer dizer que se a idéia não se revelasse boa,
o negócio poderia ser desmanchado.
Não
que Pedrinho fizesse conta daquele cavalo (que nem rabo tinha, na ocasião), mas
só de implicância. A boneca pensou assim e pensou muito bem, pois naquele mesmo
dia, à tarde, Pedrinho chegou-se a ela e foi dizendo:
—
Onde está o cavalo?
Emília
sentiu chegada a hora da briga. Empertigou-se toda, pronta para a luta.
—
Não é da sua conta! — respondeu em tom de desafio.
—
Passe para cá o meu cavalo! — continuou o menino, fechando uma terrível
carranca de Barba Azul.
—
Não sei do “seu” cavalo; só sei do “meu”.
—
Eu disse que dava o cavalo se a ideia fosse boa, mas a idéia saiu como o seu
nariz e quero o meu cavalo.
—
Pois vá querendo!
Pedrinho
perdeu a paciência. Xingou-a de cara de coruja seca (o pior insulto que havia
para a boneca) e deu-lhe um beliscão.
Ah,
o mundo veio abaixo! Emília berrou como se houvesse sete pulmões dentro dela:
“Acudam! Barba Azul está querendo me matar!” e foi tal a gritaria que todos
acudiram assustados, certos de que algum grande desastre havia acontecido.
—
É este Barba Azulzinho que me chamou de cara de coruja seca e me deu um
beliscão — disse Emília soluçando.
Todos
tomaram o partido dela, inclusive dona Benta.
—
Tamanho homem a brigar com uma pobre bonequinha de pano! Onde já se viu
semelhante coisa? Se o senhor continua assim, eu o ponho no Caraça, ouviu?
Pedrinho
emburrou, mas calou-se, e Emília vitoriosa, foi ter com o cavalinho, ao qual
cochichou uma porção de coisas.
Dali
a pouco os dois brigados se encontraram de novo e o menino disse:
—
Deixe estar que você me paga, fedor!
—
Antropófago!
—
Cara de…
—
Não diga outra vez que eu grito e dona Benta põe você no Caraça!
O
Caraça era um velho colégio de terrível fama.
Vendo
que ela gritava mesmo, Pedrinho saiu para o terreiro, muito aborrecido.
Lembrou-se de ir pescar ao ribeirão; depois mudou de ideia e, tomando o
machadinho, partiu para a floresta. O melhor meio de curar-se em tais ocasiões
era ir para a floresta derrubar pés de embaúva. A raiva recolhida saía do corpo
e ele voltava para casa perfeitamente bom. Andou por lá ao acaso por meia hora,
e por fim foi parar junto ao tronco geme-dor. Lembrou-se de fazer nova
experiência. Pregou-lhe um golpe e escutou. O tronco não deu um pio. Outro
golpe, outro, e mais de dez. O tronco, quieto, quieto!
—
Como pode ser isto? — pensou o menino. — Se o tronco gemeu daquela vez, devia
gemer agora. Se não geme agora, como gemeu daquela vez? Aqui há marosca…
Começou
a rodear o tronco e a tudo examinar cuidadosamente. Deu logo com o oco onde o
Visconde se escondera. Olhou e viu lá dentro uma coisa esquisita, com forma de
chapéu duro. Pescou-a com um gancho de pau, e com grande assombro viu que era a
cartolinha do Visconde.
—
Ué! — exclamou franzindo a testa. — A cartola do Visconde por aqui? Eu bem
estava vendo que havia marosca…
Examinando
o chão, descobriu novos sinais de que o Visconde andara por lá.
—
Não resta dúvida! — murmurou consigo depois de refletir uns momentos. — O
Visconde esteve escondido neste oco. Mas para quê? Com que fim? Aqui há
marosca… Vão ver que foi ele quem gemeu e não o tronco. Eu bem que achei a voz
parecida com a do Visconde. Mas por que havia de fazer isso? Que interesse
tinha em me enganar? Hum, já sei! Ele fez isso por instigação da Emília… A
diaba estava com medo de que eu lhe tomasse o cavalinho e me armou esta peça,
de combinação com o tal sábio de uma figa. É isso mesmo! E eles desta vez me
bobearam. Caí como um pato…
Pedrinho
estava mais desapontado do que danado. Era o cúmulo dos cúmulos, aquilo! Ser
bobeado por uma boneca de pano e um Visconde de sabugo, ele, o menino mais
esperto e sabido daquelas redondezas…
—
Mas não fica assim! — exclamou em voz alta. — Qualquer dia tiro a forra e quero
ver a cara dos dois…
Continua… VI – Miragens
Continua… VI – Miragens
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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