Narizinho foi espiar o que
Emília estava fazendo. Encontrou-a no cantinho da sala onde era o seu “quarto”,
muito atarefada em botar os seus vestidos e brinquedos nas caixas de papelão
que lhe serviam de mala. Mas notou que Emília só botava os vestidos e brinquedos
que ela, Narizinho, lhe havia dado. Os outros, dados pela negra, jaziam no
chão, amarrotados e pisados aos pés. Emília estava seriamente ofendida e sem
dúvida nenhuma preparava-se para alguma viagem. Ia arrumando as malas, ao mesmo
tempo que dialogava com o cavalinho.
— Não é
à-toa que ela é preta como carvão.
— ?
— Mentira
de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta
e ainda mais preta há de morrer.
— ?
— Boa?
Está muito enganado. Mais malvada que ela só o Barba Azul. Você é porque é novo
nesta casa e não a conhece. Tia Nastácia não tem dó de nada. Pega aqueles
frangos tão lindos e — zás! torce-lhes o pescoço. Mata patos, mata perus, mata
camundongos — não há o que não mate. Outro dia, no Natal, a diaba assassinou um
irmão de Rabicó, tão bonitinho! Pegou naquela faca de ponta que mora na cozinha
e — fugt! enfiou dentro dele, até no fundo. E pensa que foi só isso? Está
enganado! Depois pelou o coitadinho numa água fervendo e assou o coitadinho num
forno tão quente que nem se podia chegar perto.
— ?
— Como
não? Você não é melhor do que os frangos, perus e leitões. Essa é uma das
razões porque quero ir-me embora: para tira-lo daqui antes que a malvada o mate
e asse no forno. Que pena não ser você grande como o cavalo de Troia!...
— ?
— Para
quê? É boa. Para dar um coice de Troia no nariz dela.
Nesse
ponto Narizinho, que estava escondida a escutar o diálogo, apareceu.
— Que é
isso, Emília? Parece louca!…
— É que
estou arrumando minhas malas para me mudar desta casa. Não gosto de velhas, nem
brancas nem pretas.
— Ir para
onde, boba? Pensa que é só ir saindo?
— Vou
para a casa do Pequeno Polegar. Quando lhe dei de presente o pito de barro, ele
me disse: “Muito obrigado. Dona Emília. Tenho lá uma casa às suas ordens.
Apareça.” Chegou o dia. Vou aparecer e ficar morando lá.
— E você
pensa que cabe na casinha do Pequeno Polegar? Já se esqueceu, boba, de que ele
é deste tamanhinho?
Emília
pôs o dedo na testa, refletindo. Afinal caiu em si e viu que realmente seria
uma grande asneira. se mudasse para a casa do Pequeno Polegar, teria, sem
dúvida, de ficar no terreiro e dormir ao relento, com perigo de ser atacada por
quanta coruja e morcego existirem no mundo. E como tinha medo horrível de
morcegos e corujas, resolveu ficar.
— Nesse
caso fico, mas você há de me dar um vestido novo, de seda, com um laço de fita
aqui e um babado. Dá?
— Dou,
diabinha, dou. Mas com uma condição!...
— Qual é?
— Fazer
as pazes com tia Nastácia. A coitada está lá na cozinha chorando de
arrependimento de haver ameaçado você com palmadas.
A cólera
de Emília já havia passado, cedendo lugar a sentimento muito mais rendoso. Por
isso tratou imediatamente de tirar vantagem da situação, pedindo uma coisa que
era o seu encanto.
— Só se
ela me der aquele alfinete de pombinha que você sabe.
— Dá,
sim. Eu digo a ela que dê e ela dá.
— Neste
caso, fico de bem com ela outra vez. Aquele alfinete andava deixando Emilia
doente. Era um alfinete do tempo de dantes, que já não se encontra em loja
nenhuma de hoje. De aço azul, tendo em vez de cabeça uma pombinha de vidro
colorido. Tia Nastácia possuía três, um de pombinha azul, outro de pombinha
verde, outro de pombinha carijó. Era este o que Emília queria — mas queria
desesperadamente, como nunca neste mundo uma boneca quis qualquer coisa.
Continua…
V – João Faz-de-Conta
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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