A ternura é assim como uma coisa que
se sente quando olhamos para alguém ou nos olham de um modo muito carinhoso,
quando dizemos ou nos dizem palavras amigas iguais às que esperávamos, quando
nos fazem, por exemplo, uma festa no cabelo. A mãe que aperta o filho pequenino
nos braços fá-lo com ternura. Ou, quando a um canto do recreio vemos um amigo
com ar triste e o vamos buscar, lhe pomos a mão nos ombros e o trazemos para
que não esteja sozinho nem triste, isso é ternura. Uma palavra muito bonita.
A ternura é assim como uma daquelas
fadas das histórias que ouvimos contar e ficamos a pensar se existe. Daquelas
que com um toque de varinha mágica tudo mudam. Mas a ternura existe mesmo, é
uma fada real. Se quiséssemos desenhá-la, teríamos de desenhar uma rapariga
pequena, porque a ternura dá muita importância às coisas pequeninas que só se
vêem se uma pessoa estiver com muita atenção. Se não, não se vê nada. Por isso,
ela tem os olhos muito abertos, os ouvidos à escuta e na boca um sorriso.
Ternura.
Tudo isto para vos contar esta
história. É que foi com certeza a pensar na ternura, nessa pequena fada tão
importante na nossa vida, que o Miguel, um dia de manhã, no quarto dos pais
(ele costumava todos os dias ir até lá um bocadinho), disse para a mãe:
— Sabes, mãe, eu gostava de ter era
um bichinho de pelo.
A mãe achou muita graça àquilo e ao
mesmo tempo ficou admirada, e o pai que estava a dormitar ouviu também.
— Um bichinho de pelo?! Para que é
que tu queres um bichinho de pelo?
Mas o Miguel não explicou logo.
— Sim — disse ele —, eu gostava
tanto! Um bichinho de pelo só para mim.
O Miguel morava no terceiro andar de
um prédio alto, um desses prédios de cimento, e tinha mais cinco irmãos além de
outros quatro que não moravam ali. Era muita gente, mas davam-se todos muito
bem. O que é, é que o Miguel era o mais pequeno, tinha só nove anos, e fazia
uma grande diferença dos outros que tinham 16… 17… 19… 21… E por isso, com essa
gente de muitos mais anos, nem sempre era fácil conversar. Mas com um bichinho
de pelo, pequeno como ele…, pensava o Miguel.
A mãe contou aos outros irmãos o
desejo do Miguel e todos acharam graça. E os dias passaram, até que o Acaso (o
Acaso é assim um senhor que não se vê mas que intervém às vezes na nossa vida,
sobretudo se desejamos muito uma coisa e pensamos nela) interveio.
Um dia, ao fim da tarde, estava a mãe
do Miguel na cozinha a preparar o jantar e as irmãs no quarto a prepararem as
lições para o dia seguinte, quando sorridente o Miguel entrou em casa seguido
dos amigos, o To, o Paulo e o Paulito. Vinham todos afogueados de correr e ao
mesmo tempo entusiasmados, pois traziam com eles um gato muito pequeno e
magricela de pelo castanho e olhinhos verdes.
— Mãe! Mãe! — chamou o Miguel.
— Que é? — disse a mãe, vindo à sala
ter com ele.
— Olha o que nós encontrámos! — e
mostrava a mão que segurava o gato. Ao princípio a mãe zangou-se:
— Não vais trazer isso aqui para
casa, pois não? Já tenho muito que limpar e o gato ainda daria mais trabalho.
A mãe dava aulas e ainda tinha de
arrumar a casa e fazer o comer. Mas o Miguel, todo contente com o seu achado,
pediu, pediu: «Ele não suja! — disse. — Deixa lá, mãe» teimou, e até os amigos
pela voz do Tó (o Tó tinha em tempos escrito um postal ao Miguel a dizer que
ele era o seu melhor amigo, que a seguir vinham o Paulo e o Paulito, mas que
não tinha últimos amigos) intercederam junto à mãe do Miguel:
— Nós ajudamos a tratar dele.
Limpamos o que ele sujar.
E perante esta embaixada tão
insistente, as sobrancelhas da mãe do Miguel ergueram-se e ela sorriu. E o
Miguel sabia bem o significado daquele sorriso, isto é, foi logo arranjar um
pratinho de leite para o gato. Um bichinho de pelo.
E o gato ficou.
- É uma gata — explicava o Miguel às irmãs — e chama-se Sapinha.
Elas riram-se
- Sapinha! Ela que se livrasse de ir para o nosso quarto sujar! - ainda disse a irmã do meio.
Mas o Miguel não ligou. Ele sabia que iria proteger o seu bichinho de pelo. Ao princípio, a Sapinha tinha medo das pessoas e metia-se debaixo dos móveis. Não se atrevia a deitar a cabeça de fora e era preciso ir lá buscá-la. Estava num meio estranho, desconhecido. Foi preciso dar-lhe um banho para que o seu pelo castanho ficasse limpo, cor de mel, e papo branco. Mas a pouco e pouco, com os mimos todos que lhe faziam, foi ganhando confiança e conhecendo os cantos à casa e os olhos às pessoas. Gostava de ir para a varanda, empoleirar-se ao sol no parapeito, a olhar para baixo para o pátio ou para as casa e campos em frente, a cheirar as sardinheiras dos vasos, a seguir o voo das moscas. Tudo o que mexia era para ela motivo de atenção. Punha-se logo em posição de ataque, de pernas duras a preparar o salto. À noite o Miguel levava-a para a sua cama que era no cimo de um beliche, fazia-lhe festas sem fim a que ela correspondia com lambidelas amigas e depois ficava enroscada aos pés da cama. A casa mergulhava então no silêncio, o irmão mais velho apagava a luz e o Miguel podia ver os olhos brilhantes da Sapinha no escuro.
- É uma gata — explicava o Miguel às irmãs — e chama-se Sapinha.
Elas riram-se
- Sapinha! Ela que se livrasse de ir para o nosso quarto sujar! - ainda disse a irmã do meio.
Mas o Miguel não ligou. Ele sabia que iria proteger o seu bichinho de pelo. Ao princípio, a Sapinha tinha medo das pessoas e metia-se debaixo dos móveis. Não se atrevia a deitar a cabeça de fora e era preciso ir lá buscá-la. Estava num meio estranho, desconhecido. Foi preciso dar-lhe um banho para que o seu pelo castanho ficasse limpo, cor de mel, e papo branco. Mas a pouco e pouco, com os mimos todos que lhe faziam, foi ganhando confiança e conhecendo os cantos à casa e os olhos às pessoas. Gostava de ir para a varanda, empoleirar-se ao sol no parapeito, a olhar para baixo para o pátio ou para as casa e campos em frente, a cheirar as sardinheiras dos vasos, a seguir o voo das moscas. Tudo o que mexia era para ela motivo de atenção. Punha-se logo em posição de ataque, de pernas duras a preparar o salto. À noite o Miguel levava-a para a sua cama que era no cimo de um beliche, fazia-lhe festas sem fim a que ela correspondia com lambidelas amigas e depois ficava enroscada aos pés da cama. A casa mergulhava então no silêncio, o irmão mais velho apagava a luz e o Miguel podia ver os olhos brilhantes da Sapinha no escuro.
Na zona onde morava o Miguel muitas
vezes faltava a água. Horas e horas. E a água era muito precisa para lavar e
cozinhar. Uma noite, alguém deixou uma torneira aberta e a água encheu a
banheira, transbordou, e saindo do quarto de banho ameaçava inundar o resto da
casa. Ora a Sapinha, com os seus olhinhos de ver no escuro, pressentiu o
perigo e pôs-se a miar, a miar, e a esfregar as patas na cara do irmão mais
velho, que dormia por baixo do Miguel no beliche, até que ele acordou. A Sapinha continuava
a miar e a mexer-se.
- Que é que quer a gata? - pensou ele.
Levantou-se e viu que a água, inundando o corredor, entrava já pela brecha da porta do quarto e correu a fechar a torneira. Foi o que valeu.
Levantou-se e viu que a água, inundando o corredor, entrava já pela brecha da porta do quarto e correu a fechar a torneira. Foi o que valeu.
A Sapinha tinha evitado uma inundação e
por isso ganhou fama de bichinho esperto. O Miguel contou aos seus amigos, o
To, o Paulo e o Paulito e a toda a vizinhança o que a Sapinha tinha
feito e o caso foi muito falado. A Sapinha era uma heroína.
Um dia, a senhora Graça,
mulher que ia às vezes fazer serviço de limpeza lá em casa, disse para a
irmã mais velha:
— Sabe, menina?, a gata não é uma
gata, é um gato.
Era verdade.
Quando o Miguel soube disto ficou
muito triste. Ele acostumara-se a chamar-lhe Sapinha, o bichinho de pelo só para si.
Agora um gato! E durante algum tempo queria que as irmãs continuassem a
chamar-lhe gata Sapinha, senão não deixava ninguém pegar-lhe. Mas depois
pensou, pensou e disse para si:
- Gato ou gata, que interessa se é um bichinho de pelo?!
- Gato ou gata, que interessa se é um bichinho de pelo?!
Era de novo a ternura, aquela fada
real de que vos falei no princípio desta história, aqui sob a forma dum gato
cor de mel e papo branco e de um menino que queria ter um bichinho de pelo só
para si, mas que aparece muitas vezes na nossa vida, sob outras formas se nós
quisermos. E ainda bem, porque a ternura faz muita falta.
Inácio
Pignatelli
O pastor de nuvens e outras histórias
Lisboa, Editorial Verbo, 1985
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