Dez anos de Kest





Vivia em Viena, há mais de meio século, um jovem chamado David Kirsch, filho de um milômed, homem prudente e sensato. Kirsch adornava o seu espírito com uma qualidade bastante apreciável: não ousava tomar resolução alguma de certa relevância sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos. Seu judicioso pai lhe dera a seguinte recomendação:
— Cabe-me dizer-te, meu filho, que deverás evitar qualquer casamento quando do consórcio resultar aproximação, por parentesco, com um judeu vermelho.
Com a prudência que a longa experiência da vida sói ensinar aos homens, o pai acrescentara:
— Se algum dia, porém, por triste fatalidade, caíres nas garras de um judeu vermelho, procura sem demora o auxílio de outro judeu vermelho.
Quis o jovem David conhecer, mais por curiosidade do que por outro motivo, a razão de ser daquele estranho conselho, mas o velho milômed recusara-se terminantemente a dar qualquer explicação, alegando que tinha, para assim proceder, motivos que de consciência não poderia revelar.
O jovem David Kirsch foi procurado por um agenciador de casamentos. Trocadas as saudações habituais, o agenciador assim falou, assumindo como sempre um ar de máxima reserva e discrição:
— Como sei que pretendes resolver do melhor modo possível o problema de teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te que obtive para o teu caso uma solução admirável. A noiva que tenho em vista é formosa, de família honesta e, além do mais, muito culta e prendada.
— E o dote? — indagou David, grandemente interessado, procurando tocar com a máxima finura naquele assunto tão delicado.
— Quanto ao dote — aclarou logo o agenciador, com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional — está combinado que será de mil coroas, e terás ainda dez anos de kest.
— Dez anos de kest! — repetiu David, numa sinceridade de veemente surpresa. — Mas isto é espantoso, inacreditável!
Sou forçado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor não-judeu, isto é, ao meu bom amigo gohin, um esclarecimento que me parece indispensável.
O kest é costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, além do dote (que é de uso também entre os cristãos), concede ao genro, a título de auxílio para iniciar a vida, a permissão de viver durante algum tempo em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentação, quer mesmo com o vestuário. Esse período, durante o qual o pai da jovem toma a seu cargo a subsistência completa dos recém-casados, é denominado kest, e em geral varia de um a três anos. Para um jovem egoísta, sem ânimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistível. Era esse, precisamente, o caso de David Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa-vida e do feriado permanente.
Dez anos de kest! Um judeu sensato não poderia hesitar. A cerimônia do noivado, com a clássica apresentação das famílias, foi marcada para alguns dias depois.
Quando David Kirsch foi levado à presença da sua noiva, ficou maravilhado. O agenciador não o havia iludido, pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, esbelta, cheia de vida, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lábios todos os ímãs inconcebíveis da beleza. Rebla, a filha do rei de Gorner, não parecera mais sedutora aos olhos do grande Salomão. Dela diria certamente o poeta: “De longe parece uma estrela; de perto, uma flor”.
Dolorosa foi, porém, a surpresa do noivo judeu ao defrontar, pela primeira vez, com o seu futuro sogro. Pela cor fulva dos cabelos, pelas sardas que repintavam o carão avermelhado, era o velho um tipo perfeito e inconfundível de judeu vermelho.
Naquele momento, invadido por negrejante inquietação, recordou-se David do conselho que a prudência paterna lhe ditara: “Evitar qualquer aproximação, pelo casamento, com um judeu vermelho”. Mas que fazer, naquela dependura? A sua palavra estava dada. Ademais, acima de qualquer compromisso, esmagando dúvidas e receios, os dez anos de kest constituíam um argumento irrespondível, diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consórcio que se lhe afigurava tão promissor.
Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial, e o jovem passou a viver com sua adorada esposa o seu belo período de kest, em casa do rico judeu vermelho.
— Esse judeu vermelho — pensou David, altamente desconfiado com o caso — alguma peça desagradável prepara para mim. Custa-me acreditar que ele mantenha essa liberalíssima promessa dos dez anos de kest. Naturalmente terei, em sua casa, um tratamento tão vil e humilhante, que nem mesmo um cão seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou três meses, é certo, serei forçado, pela situação, a procurar outro pouso e trabalho. Alguma perfídia o meu sogro já planejou contra mim!
Com grande espanto, entretanto, o jovem David verificou que o pai de sua esposa era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianças. O judeu vermelho mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensava ao seu novo genro um tratamento principesco. Fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeições, proporcionava-lhe passeios agradabilíssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.
— Meu pai não tinha razão — meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejável que desfrutava em casa de seu sogro. — Que outro marido poderá ser mais feliz do que eu? Minha esposa é encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho, preocupação ou contrariedade, terei nesta casa mesa sempre lauta, agasalho, carinho e consideração!
Ao cabo de alguns dias o velho judeu vermelho chamou o indolente marido de sua filha e interpelou-o, muito sério:
— Dize-me, ó David: és, na verdade, feliz na tua nova situação de homem casado e chefe de família?
— Muito feliz, meu sogro — confirmou o jovem, num retraimento de espanto. — Sinto-me aqui incomparavelmente feliz.
— Se assim é, o teu kest está terminado!
— Terminado o meu kest? — protestou atônito o marido parasita. — Mas se eu estou casado há pouco mais de uma semana! Como pode ser isto?
— Como pode ser? Nada mais simples. Vou provar claramente. Estás casado com minha filha há dez dias. Bem sabes que no livro dos provérbios encontramos exarada esta sentença: “Quando um homem é feliz, um dia vale um ano”. Logo, de acordo com esse tradicional provérbio, estás casado há dez anos! Amanhã, portanto, levarás de minha casa tua esposa e irás para a tua residência. Creio que deverás também procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim já recebeste o necessário auxílio, o dote e o kest prometidos.
Diante da imposição do sogro, David sentiu-se presa de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso judeu vermelho manteve-se intransigente, e não houve como levá-lo a reconsiderar a resolução que havia tomado, insistindo em afirmar que nada mais fazia senão atender à verdade contida no provérbio: “Quando o homem é feliz, um dia vale um ano”.
Não se conformava o rapaz com a idéia de ser obrigado a trabalhar para viver; e a situação a que fora atirado envenenou-lhe o espírito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido indigno, a seu ver, o proceder do sogro. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest, e depois, por evidente má-fé, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzira o prazo a dez dias. Que tratante! Um grande velhaco! Quando o interesse estava em jogo, sabia transformar um simples provérbio em lei social!
— Meu pai tinha razão — murmurou David, recalcando os seus rancorosos impulsos. — Toda razão tinha meu pai. Pratiquei uma imprudência muito séria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que melhor do que eu deve conhecer a vida e os filhos de Israel.
Resolvido a não incidir uma vez mais no erro, o jovem recordou-se da segunda parte do conselho paterno, e foi, nesse mesmo dia, procurar um conhecido seu chamado Elias Bloch, também judeu vermelho, e pediu-lhe indicasse um meio que lhe permitisse sair da situação crítica em que se encontrava.
O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem David, e depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, expediu uma risadinha seca e maldosa, e respondeu com um relâmpago de inspiração no olhar:
— Não vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irás amanhã à casa de teu sogro, e se seguires as minhas instruções, sairás vencedor nesse litígio.
No dia seguinte, David Kirsch, tendo nas mãos um exemplar da Torá — que é o livro da lei, entre os hebreus — foi ter à rica vivenda do seu astucioso sogro.
Depois de saudá-lo com certa reserva e cerimônia, como se as relações entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou com teatral entonação:
— Por motivos muito graves sou forçado a vir agora à sua presença. Vou divorciar-me!
Divórcio! Esta palavra, para a família judaica, representa uma desgraça só comparável às maiores calamidades.
— Estás louco, rapaz! — protestou o velho, empalidecendo ligeiramente. — Bem sabes que o divórcio só pode ser obtido segundo a lei de Moisés. Que motivo poderá ser aduzido para justificativa dessa nódoa infamante com que pretendes golpear a minha família?
— Tenho a lei a meu favor. Como o senhor mesmo declarou e provou, vivi em sua companhia os dez anos de kest. Os doutores e rabis não ignoram que o Livro da Lei de Moisés diz com a maior clareza: “Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divórcio”. Ora, estou casado há dez anos e não tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a lei, o direito de repudiar minha esposa.
— Que brincadeira é essa, meu filho! — retorquiu o judeu vermelho, emergindo da sua estupefação e abraçando amavelmente o genro. — Afastemos de nós as idéias tristes, pois já não foi pequeno o susto com que abalaste meu coração de pai. Fizeste mal em tomar a sério o meu gracejo sobre o tal provérbio dos dias felizes. E se assim é, fica o dito pelo não-dito. Se eu prometi dez anos de kest, é certo que poderás viver todo esse tempo em minha casa.
E concluiu, com um gesto convencido e superior, passando lentamente a mão pelos cabelos avermelhados:
— Jamais deixei, menino, como bom judeu, de cumprir a palavra dada.


Fonte: Malba Tahan, Lendas do Povo de Deus – Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 1964

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