A noite em branco de Raimundo




Raimundo é um menino de sete anos. Anda na escola primária e está a aprender a ler e a contar. Aprende também a escrever e a escutar sem falar, quando a professora explica.
Raimundo gosta muito de jogar futebol, de brincar às caçadinhas e de pegar no tabuleiro quando come na cantina. Não gosta que os grandes o empurrem no recreio nem de ir com a mãe às compras depois da escola. Quando for grande, quer ser fabricante de jogos de vídeo. Mas isso, só mais tarde. De momento, o que Raimundo mais quer é passar uma noite em branco. Uma noite em branco a sério, como fazem os adultos.
Um dia ouviu os pais falarem disso e, a partir daí, Raimundo não quer outra coisa. Hoje está mesmo decidido: vai viver a sua primeira noite em branco.
Raimundo sabe muito bem que não vai ser fácil. Se não, não era proibido às crianças. Deve ser perigoso. Mas como amanhã não há escola, Raimundo sente-se capaz de enfrentar todos os perigos. Já tem tudo preparado: um anoraque para o caso de a noite ser branca como a neve, um copo grande para o caso de ser branca como o leite, e até molas da roupa. É que um dia a mãe disse-lhe: “Raimundo, estás branco como um lençol!” Não percebeu lá muito bem o que é que aquilo queria dizer, mas não faz mal. Se a noite for branca como um lençol, ele terá de a dependurar. Raimundo pensou em tudo e não está a ver o que ainda possa fazer-lhe falta.
Durante o jantar, não pensa noutra coisa. E pensa de tal maneira, que até se esquece de comer. E como Raimundo costuma comer à glutão, a mãe fica preocupada:
— Está tudo bem, meu amor? Estás com um aspecto esquisito!
— Está tudo bem, mamãe, só me sinto um bocadinho cansado.
— Terás febre? Ora chega aqui — diz ela, pegando nele ao colo.
Ai! Ai! Ai! Raimundo conhece bem aquele ar preocupado da mãe. Ela não pode pensar que ele está doente. Da última vez que teve febre, a mãe ficou ao pé dele até Raimundo adormecer, e veio várias vezes durante a noite ajeitar-lhe a roupa.
Para a sossegar, Raimundo começa a cantar e a dançar em redor da mesa.
— Não, mamãe. Estão a ver? Não estou doente.
— Está bem, está bem — intervém o pai. — Parece que estás em forma. Vá, acaba lá de comer e vai para a cama!
Para não levantar suspeitas, Raimundo faz um pouco de teatro, como costuma fazer quando chega a hora de ir para a cama.
— Vamos lá, cavalheiro, fecha os olhos. Sonhos cor-de-rosa!
Depois o pai dá-lhe um beijo na testa e sai muito devagarinho.
Debaixo dos cobertores, Raimundo procura não se mexer. E não se mexe mesmo nada. Raimundo espera… espera… Boceja e espera. Tem a impressão de esperar horas. Em baixo, os pais discutem. “Mas então os adultos nunca mais vão para a cama?”, interroga-se ele. Ao fim de muito tempo, ouve-os subir as escadas. Desta vez, sim! Estava a ver que nunca mais chegava a hora. Oh, não, os pais ainda continuam a falar! Raimundo tem vontade de se levantar e de lhes dizer que se vão deitar. Pergunta-se como é que o pai e a mãe, que se veem todos os dias, ainda têm tanta coisa a dizer um ao outro. Certamente é mais um dos segredos das pessoas crescidas!
Até que enfim: tudo parece calmo.
Raimundo levanta-se devagarinho. Fecha a porta do quarto e tira de debaixo da cama o copo, o anoraque e as molas da roupa. Agora está pronto: a noite em branco pode começar!
Em pijama, senta-se na cama e cruza os braços. Começa a ficar cansado e com os olhos a fecharem-se, mas não pode deixar-se adormecer. Então, põe-se a saltitar no quarto. Não muito alto para não acordar a casa toda.
Para passar o tempo, arruma no álbum os postais de animais e, de seguida, coloca os dinossauros por ordem de tamanho. Depois… começa a aborrecer-se.
Como ainda não sabe ler as horas, não sabe há quanto tempo está à espera. Uma hora? Duas horas? Seja como for, parece-lhe que já espera há mais de um ano. Mas Raimundo não é daquele tipo de rapazinhos que perdem logo a coragem. A noite em branco tem de ser merecida.
Primeiro, é preciso pensar. Uma vez que a noite em branco é para os adultos, não pode fazer brincadeiras de criança. Claro! Devia ter pensado nisso antes! É preciso arranjar uma atividade de gente grande.
É fácil! É… mas ao certo, ao certo, o que é que fazem os adultos quando passam uma noite em claro? Raimundo tenta recordar o que os pais lhe contaram.
Na verdade, eles não lhe contaram absolutamente nada. Nunca lhe disseram o que faziam.
Da última vez que os pais saíram, lembra-se de ter visto a mãe preparar-se. Vestiu uma saia vermelha muito bonita, muito comprida, mas, em vez de calçar sapatos, decidira calçar umas sapatilhas. Ficavam esquisitas com a saia; a mãe explicou-lhe que assim estava mais à vontade para dançar a noite toda. Pois bem, aqui está o que fazem os adultos para passar uma noite em branco: dançam! O problema é que Raimundo não sabe dançar. Às vezes, quando ainda era pequeno, andava à roda com a mãe, mas agora que já tem sete anos, não gosta muito disso. Na escola, as suas amigas dançam muitas vezes no recreio e cantam as canções que estão na moda; e para se armar em grande, Raimundo e os amigos fazem troça delas.
Esta noite, Raimundo lamenta não ter dançado também. Ajudava agora a passar a noite em branco. Mas isso também não deve ser um problema. Com um pouco de vontade, ele vai conseguir.
Raimundo liga o leitor de cassetes que lhe deram quando fez cinco anos. Põe-se a carregar nos botões todos, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, quando, de repente …reineta e maçã francesa; framboesa, framboesa vermelha… ecoou no quarto.
Raimundo até deu um salto para trás. A cassete pôs-se a tocar com o volume no máximo. Atira-se ao aparelho e desliga-o. Com coração aos saltos e o aparelho apertado contra o peito, fica à espera, mas, além do bater do coração, não se ouve mais nenhum barulho na casa.
“Isto das cassetes não é lá muito boa ideia”, diz Raimundo para consigo. Só há canções para bebês. Tem de encontrar canções como as que os pais ouvem no rádio. O rádio! É isso mesmo! No rádio passa música para os adultos!
Raimundo sai do quarto, atravessa o corredor em bicos de pés e entra no quarto de banho sem fazer barulho. A mãe adora ouvir música quando está a tomar banho. Desta vez, Raimundo tem cuidado para não pôr o som muito alto, e liga o rádio pequenino que está em cima do móvel, ao lado do lavatório.
Uma moça canta: A minha viiida é para te amar… nunca esquecerei os beijos apaixonados. “Não, esta não é lá grande coisa…”
De orelha colada ao rádio, Raimundo espera por outra canção. Desta vez começa forte. Um cantor grita qualquer coisa que Raimundo não entende. Deve ser inglês. Bem, pelo menos é diferente!
Raimundo serra os punhos – viu os primos grandes fazer assim – balança-se sobre um pé e sobre o outro e abana o rabo. A música vai um pouco mais rápido, mas Raimundo acha engraçado. Vira-se para o espelho, sorri, acha que não está nada mal. Depois, inclina-se para o lado e zás! Uma voltinha… Zás! Pega na escova dos dentes e põe-se a cantar. Vaze sclo flich tav… Não está a sair-se nada mal! Um jeitinho de cabeça para o lado, um saracoteio para a direita e zás! Uma voltinha! Aamo-teee, e a canção chega ao fim. Olha, afinal era francês. A seguinte é do mesmo estilo e Raimundo sente-se cada vez mais à vontade. Mas, de repente… ouve o ranger de uma porta. Lança-se sobre o rádio e desliga-o. Mas tarde demais. Ouve passos a aproximar-se e esconde-se a toda a pressa atrás do cortinado do duche.
De repente, a grande imagem do pai aparece no espelho por cima do lavatório. Raimundo tem vontade de rir ao ver-lhe a cabeça. Com os cabelos desgrenhados, o pai apoia-se na beira do lavatório, boceja ao esfregar a testa e olha para o rádio. Aproxima a cara do espelho e passa as mão pelos pelos da barba! Como se acabasse de descobrir que tinha pelos! Na sua idade, já devia estar habituado! Parece não só admirado mas até aborrecido com isso! Raimundo, pelo contrário gostava muito de ter pelos, porque todos os heróis têm pelos, toda a gente sabe disso! Se amanhã Raimundo chegasse à escola com barba grossa e preta, a Clementina já não se metia mais com ele!
Raimundo fica com vontade de rir ao imaginar a cara dos seus colegas.
Pronto. Finalmente, o pai sai do quarto de banho. Raimundo corre para o quarto e fecha a porta.
Uau! Talvez ainda não tenha visto a noite em branco mas, para já, está a ser mesmo muito engraçado! Tem pressa de voltar à escola na segunda-feira para contar tudo aos colegas.
A noite ainda não acabou… Bem, a dança foi um fracasso, e agora é preciso encontrar outra coisa. Raimundo dá uma volta pelo quarto. Os dinossauros: estão arrumados! O álbum de animais: está tudo pronto!
Sentado em pijama em cima da cama, Raimundo pensa, pensa… Quase que adormeceu! Ora deixa cá ver, pensa ele, o que é que os adultos podem fazer mais para passar uma noite em branco, além de dançarem?
Bebem champanhe, pois claro! Na última passagem de ano, os pais foram festejar e levaram uma garrafa de champanhe! Mas é evidente que Raimundo não vai beber champanhe! Um copo de leite, isso sim! Pega no copo que tinha preparado para a sua noite em branco e sai do quarto.
É a primeira vez que se aventura sozinho pela casa, durante a noite. Tem de descer as escadas às escuras, se não quer acordar os pais. Vá, coragem, Raimundo, a casa é a mesma quer esteja iluminada pela lua ou pelo sol.
Mas, ao fundo do corredor, Raimundo fica estarrecido de medo. Dá de caras com uma espécie de gigante com tentáculos, pronto a deitar-lhe as mãos ao pescoço!
Desta vez acabou tudo, nunca mais vai ter uma noite em branco, nunca mais vai ver o novo desenho animado do seu herói preferido, o Musculator Hypertronique, o regresso; nunca chegará a conhecer a irmã grande de Antonino que, segundo dizem, é super-bonita, nunca mais vai ganhar ao pai no xadrez… Vai acabar comido por um monstro. E aos sete anos, não tem graça nenhuma!
O monstro continua imóvel. De tal forma imóvel, que parece morto. Sim, morto, morto de medo, se calhar. Aos poucos, os olhos de Raimundo vão-se habituando à escuridão, e o monstro, visto mais de perto, parece cada vez mais um… um… candeeiro.
Não é um monstro. É aquele horrível candeeiro de pé alto que o tio ofereceu aos pais no ano passado. Com três grandes braços que saem de uma plataforma oval e, na extremidade de cada um, um grande globo prateado.
É a terceira vez, desde o início da noite, que Raimundo tem a impressão de que o coração lhe vai parar. E diz-se mesmo “ficar branco de medo”! É que a noite em branco pode ser isto: ter medo a noite toda. E assim seria muito menos divertido do que o previsto.
Passado o susto — afinal ainda tem possibilidade de vir a conhecer a irmã grande do Antonino – Raimundo desce as escadas e senta-se na cozinha para ganhar fôlego.
Afinal, é giro ser grande e não ter medo de passear pela casa fora, a altas horas da noite!
Abre o frigorífico e pega na garrafa do leite. Enche um copo grande, bebe, volta a encher, bebe de novo, e pergunta o que é que pode ir fazer a seguir.
Raimundo não sabe que horas são. Mas de uma coisa tem ele a certeza: nunca foi tão tarde para a cama. Pergunta-se o que mais poderá reservar-lhe ainda uma noite em branco!
De regresso ao quarto, Raimundo põe-se à janela. Trouxe um copo de leite e bebe-o a olhar para o jardim iluminado pela lua. Tudo parece tão calmo, tão tranquilo.
De repente, um grito na noite fá-lo arrepiar-se. É uma coruja! Mas o grito era tão lancinante que Raimundo entornou o leite todo pelo pijama abaixo! Não haja dúvida, passar uma noite em branco dá que fazer.
Como vai ele explicar à mãe o facto de o pijama estar todo molhado? Ela vai de certeza pensar que ele fez xixi na cama. Mas isso está fora de questão! Raimundo corre para o quarto de banho – agora já não tem medo nenhum de passear no escuro – e leva o secador de cabelo para o quarto.
Despe-se num ápice e, com as molas, prende o pijama na barra da cama e põe-se a secá-lo.
Ainda bem que ninguém o vê! Tem ar de malandro, no quarto, com o secador de cabelo na mão! Se a isso se chamasse “uma noite em vermelho” ainda poderia entender, porque naquele momento estava vermelho de vergonha.
Raimundo continua sem saber o que é uma noite em branco. E pior ainda, começa a sentir frio. Enfia o anoraque e senta-se aos pés da cama. O pijama continua úmido. Raimundo já começa a ficar farto! Toda aquela trabalheira para nada!
Um pouco desiludido, volta para a janela. Lá fora, a lua brilha e, ao fundo da rua, Raimundo vê uma luz branca…muito longe, pequenina. Repara melhor e concentra-se.
Sim, não está a sonhar, há de facto, ao longe, uma luzinha branca. Doido de alegria, Raimundo fixa-se no ponto luminoso. Fixa-o até lhe doerem os olhos, mas a luz não se mexe. Está lá, distante.
Se calhar é um candeeiro de rua. E daí, talvez não!
E se afinal fosse aquilo a noite em branco? Se fosse aquela luzinha que se vê quando está noite escura lá fora?
E porque é que não há-de ser? Raimundo não tem bem a certeza, mas parece-lhe que começa a ter sono. Estende-se na cama, com os braços cruzados debaixo da cabeça, como vê o pai fazer muitas vezes, e põe-se a pensar. E se ele decidisse, sozinho, como um adulto, que aquela luzinha era a sua noite em branco?
Para poder descobri-la passou por muitas provas. Aprendeu a dançar, a passear no escuro sem ter medo, a desenvencilhar-se sozinho, ficou um pouco mais crescido nesta noite, na sua noite em branco, que foi bem merecida!
E como uma noite em branco é uma espécie de segredo, aquela noite vai ser o seu segredo!
Ao adormecer, Raimundo decide que, quando for mais crescido, há-de voltar a fazer o mesmo, mas desta vez com um amigo, para partilhar um segredo a sério, e talvez para crescerem juntos!
Barnier Armelle
La Nuit Blanche de Raymond
Arles, Actes Sud Junior, 2004
Tradução e adaptação

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