I – Sons mágicos
Sara andava feliz: o dia do seu aniversário estava muito próximo.
Ia fazer sete anos!
A mãe e o pai já lhe tinham perguntado que presente gostaria de
receber, mas Sara, apesar de ter muitas ideias sobre o que a deixaria contente,
ainda não se decidira…
Fizera uma lista com algumas das coisas interessantes que sonhava
vir a ter: uns sapatos de tênis azuis que vira na montra da sapataria do seu
bairro; uns patins para ir até ao parque patinar com os vizinhos da sua idade;
um estojo bem grande com tintas de todas as cores e pincéis de vários tamanhos
para fazer belas pinturas…
Havia tantas coisas bonitas que a escolha era difícil.
Um dia, ao regressar da escola com o primo mais velho, que já tinha
dez anos, passou pela igreja paroquial, que ficava ao fundo da rua onde morava,
e ouviu um som maravilhoso que voava até aos seus ouvidos, convidando-a a
aproximar-se…
Então, Sara disse ao primo que tinha de entrar na igreja nem que fosse
só por um instante, para ver de onde vinha aquela música tão bonita que quase a
fazia voar.
O primo lá lhe disse que a esperaria cá fora, no passeio, e
pediu-lhe que se despachasse, pois já eram horas do lanche e ele tinha barriga
a pedir um copo de leite com chocolate e uma tosta com a compota que a avó
fazia.
Sara subiu muito depressa os degraus e, depois de fazer alguma
força para conseguir abrir a porta da igreja, entrou… A música ouvia-se agora
muito melhor e vinha lá da frente, do lado direito do altar-mor.
Sara já ali tinha estado várias vezes, mas nunca tinha ouvido
aquela música, só a que era cantada pelo coro dos jovens nas missas de domingo.
Começou, então, a caminhar pelo corredor central, sobre uma passadeira muito
comprida, de cor vermelha. Ao chegar lá à frente, viu que estava uma senhora a
tocar no órgão que Sara já ali vira, mas não sabia como soava.
A senhora que estava a tocar — e tinha olhos azuis e o cabelo quase
todo branco — não reparou que Sara estava ali, maravilhada, a ouvi-la; assim,
continuou a tocar, muito concentrada. Sara sabia que não podia demorar-se, pois
o primo estava lá fora no passeio, à sua espera, mas não conseguia ir-se
embora. Simplesmente não conseguia!
Era como se aquela música não a deixasse mexer.
A certa altura, deixou-se cair lentamente no chão, ao lado do
órgão, pousou a mochila ao pé de si e ficou a ouvir aquela melodia tão bonita
até a organista parar de tocar.
O tempo do ensaio da senhora de cabelo branco tinha chegado ao fim
e foi só quando se levantou que reparou na menina sentada no chão, ainda de
olhos fechados, lembrando os sons mágicos que lhe tinham entrado pelos ouvidos
e descido até ao coração.
A organista admirou-se de ver ali Sara e tossiu duas vezes para ela
lhe dar atenção.
Finalmente, Sara abriu os olhos e, vendo a senhora, levantou-se à
pressa, pegou na mochila e achou que tinha de dizer alguma coisa, talvez pedir
desculpa, mas só conseguiu dizer:
— A sua música é a mais bonita que eu já ouvi! É a mais bonita do
mundo!
A senhora sorriu-lhe e agradeceu com o sotaque de um país
longínquo:
— Obrigada. Fico contente por teres gostado. Mudei-me há pouco
tempo para este bairro e nunca tinha tocado aqui.
Depois, vendo que Sara se aproximava do órgão para observar as
teclas, perguntou-lhe:
— Gostavas de aprender a tocar?
— Muito! — exclamou a menina, sem deixar de olhar para aquelas
teclas fantásticas.
Então, quis saber:
— Como é que a música saiu daqui?
— Como te chamas? — perguntou-lhe, então, a senhora, pondo-lhe a
mão direita sobre o ombro.
— Sara. E vou fazer sete anos no dia dezesseis de abril.
— Pois então, Sara, o mais importante é saberes que a música que
sai de um órgão, de um piano ou de uma viola nasceu no Céu.
— No Céu?! — admirou-se a menina.
— No Céu. Ela desce, invisível, pelo ar, e só quem gosta dela de
verdade é que pode tocá-la. Sara estava muito surpreendida e, entusiasmada,
quis saber:
— E onde é que eu posso aprender a tocar?
A senhora voltou a sorrir e contou:
— Chamo-me Helga. Nasci na Alemanha, onde também nasceram grandes
compositores como Bach, Beethoven, Mendelssohn, Robert Schumann… E dou aulas de
piano, em minha casa, a quem quer aprender. Mas é preciso querer mesmo
aprender!
— Esses nomes que disse são de pessoas que também ouviram a música
descer do Céu?
— Precisamente! Foram grandes músicos e deixaram-nos escritas as
suas obras para nós também as tocarmos o melhor que formos capazes.
Neste momento, Sara olhou para o corredor central da igreja e viu o
seu primo com cara de zangado. Então, teve de despedir-se:
— Gostava de saber mais sobre música, mas tenho de ir para casa,
que o meu primo está à minha espera…
Helga avisou-a, então, de que estaria novamente ali na igreja no
domingo seguinte, a tocar na missa do meio-dia, e que gostaria de voltar a
vê-la e talvez conversar com a sua mãe ou o seu pai. Sara sorriu, disse-lhe
adeus com a mão e, por fim, seguiu o primo, que morava no mesmo prédio onde ela
morava com os pais.
II – Os dedos de Sara
No domingo, depois da missa, Sara aproximou-se da organista de
cabelo branco e, ao vê-la, a mãe seguiu-a.
Então, depois de fechar a tampa de madeira sobre o teclado, Helga
começou a falar com a mãe de Sara sobre as aulas de piano.
A certa altura, a mãe de Sara olhou para ela e perguntou-lhe:
— Queres mesmo aprender a tocar?
— Quero! — apressou-se a menina a responder.
Em seguida, muito animada, pediu:
— Posso começar amanhã?
— Amanhã ainda não — disse-lhe a mãe. — Primeiro, precisamos de
falar com o pai sobre este assunto. Mas tudo se há de resolver.
Mãe e filha despediram-se da organista e encaminharam-se para a
porta da igreja. Sara ficou a olhar para trás durante algum tempo, enquanto
seguia de mão dada com a mãe, sorrindo para Helga. Na verdade, estava mesmo
desejosa de começar a aprender a tocar tão bem como ela.
Naquela tarde, em casa, Sara foi para o seu quarto e sentou-se na
cama a pensar na sua primeira aula de piano. Estava tão ansiosa por começar a
aprender que era só nisso que pensava!
A certa altura, esticou os braços para a frente e fechou os olhos…
Então, imaginou que tinha à sua frente um piano como o que havia em
casa da avó ou um órgão como o que ela conhecia da igreja paroquial. Depois,
sempre de olhos fechados, animou-se e pôs-se a mexer os dedos. Ora, aconteceu
então que, como se fosse por magia, começou a ouvir notas… Notas de música!
Como as que saíam dos instrumentos verdadeiros!
Primeiro, saiu um dó, que vinha um pouco rouco; depois, um ré; em
seguida, saiu um mi, mais decidido; logo a seguir, ouviu um fá, um sol muito
feliz, um lá, um si que subiu até ao teto e, por fim, um outro dó, desta feita
mais agudo do que o primeiro que saíra do seu piano-fantasma.
Depois de ouvir toda a escala musical, Sara abriu os olhos e olhou
para as suas mãos. Estava maravilhada! A música parecia mesmo ter saído
dos seus dedos! Seria que os seus dedos tinham realmente música lá dentro,
música nascida no Céu?!, perguntava-se ela, muito admirada.
Mais tarde, um pouco antes do jantar, quando os familiares
apareceram em sua casa, Sara chamou o primo até ao quarto e, sentando-se outra
vez na cama, disse-lhe para ficar em silêncio absoluto. Depois, esticando os
braços para a frente, pôs-se outra vez a mexer os dedos, como fizera quando
estava sozinha.
Então, fez soar o dó, o ré, o mi e as restantes notas da escala
musical até à última. No fim, perguntou ao primo:
— Gostaste?
O primo não percebeu a pergunta de Sara e quis saber:
— Gostei de quê? De te ver a mexer os dedos como se estivesses a
tocar piano?…
Sara compreendeu, então, pela cara do primo, que ele não tinha
ouvido o mesmo que ela. No entanto, ainda com alguma esperança, perguntou-lhe:
— Não ouviste nada?
— Não. O que é que querias que eu tivesse ouvido?! Tens as mãos no
ar!
— Nem uma só nota?! — insistiu ela, um pouco desolada.
— Nada, já disse — e, virando costas, saiu do quarto da prima,
achando que, decididamente, não compreendia nada das brincadeiras das
raparigas, que, às vezes, eram muito estranhas.
Sozinha no quarto, a menina foi até à janela e encostou-se ao
parapeito.
Estava um pouco triste por descobrir que só ela podia ouvir as
notas do seu «piano invisível», mas, passado um momento, sorriu, porque se pôs
a sonhar acordada: em breve, iria começar a aprender a tocar num piano daqueles
que toda a gente vê, dos que têm cor preta, umas teclas claras e outras
escuras, e um tampo de madeira. Nessa altura, o primo, os pais, os avós e tios,
todas as pessoas poderiam, certamente, ouvi-la tocar. E como seria bom que isso
acontecesse bem depressa!
Naquela noite, depois de as visitas terem saído, Sara regressou ao
seu quarto e, antes de adormecer, a mãe veio dar-lhe um beijo.
— Estavas muito pensativa ao jantar, Sara — disse-lhe.
— É que eu queria começar a aprender a tocar piano o mais depressa
possível — respondeu ela.
E confessou:
— Não consigo pensar noutra coisa, mãe! Deve ser tão bom!
A mãe sorriu e aconchegou-lhe o lençol.
— Gostavas mesmo de aprender a sério?
— Gostava muito! Até podia ser o meu presente de anos, começar as
aulas de piano!
Sara estava verdadeiramente entusiasmada, bem se via.
— Bem, vou pensar no assunto — disse-lhe a mãe. — Hum… acho que
gostava de ter uma pianista na família… Mas terás de praticar muito para vires
a tocar bem!
— Por mim, posso até praticar todos os dias — apressou-se Sara a
responder.
— Agora, são horas de dormir. Boa noite! Sonha com o teu piano…
E, dizendo isto, a mãe apagou a luz do candeeiro e saiu do quarto,
agora só iluminado pelo luar que entrava pela janela.
Sara demorou algum tempo a adormecer, ao contrário do que era
habitual. Então, teve um sonho maravilhoso: estava sentada num banquinho
redondo, a tocar num piano todo branco que tinha o seu nome escrito em letras
grandes. Ora, quando começou a tocar as notas mais agudas, sentiu-se subir no
ar, tocando sempre, até chegar perto de uma nuvem onde brincavam dois anjos
pequeninos, com as suas asas feitas de penas macias e tão brancas que até
brilhavam ao luar.
Que divertido que era estar tão perto dos anjos! Devia ser mesmo
bom viver naquele lugar! Então, enquanto tocava, Sara perguntou-se se Deus
estaria também a ouvir a sua música e, pensando nisto, sorriu, muito contente.
III – A festa de anos
Finalmente, chegou o dia 16 de abril!
Era o dia do aniversário de Sara, que, desde manhã cedo, começou a
pensar na sua festa.
Quando foi acordá-la, a mãe deu-lhe um beijo e prometeu-lhe uma
surpresa para mais tarde. Então, Sara ficou ainda mais entusiasmada. Sabia que
os pais tinham sempre uma boa surpresa para ela no dia dos anos. O que seria,
desta vez? À hora do lanche, toda a família se reuniu à volta da mesa. A mãe de
Sara foi à cozinha buscar o bolo de anos onde estavam desenhadas algumas notas
de música. Então, acendeu as velas e todos cantaram os parabéns. Depois, Sara
apagou as velas e todos bateram palmas.
Em seguida, os avós, os tios e o primo de Sara foram entregar-lhe
os presentes, que ela agradeceu, muito contente.
Eram coisas de que Sara gostava muito: o primo ofereceu-lhe uma
caixa de chocolates recheados de avelãs; a tia, que era professora, deu-lhe um
livro com a história de uma menina que tinha o seu nome — Sara; os avós
tinham-lhe comprado uns patins e um estojo com material de desenho e pintura…
Por fim, os pais aproximaram-se e a mãe deu-lhe a notícia que ela
mais queria ouvir:
— Amanhã, começam as tuas aulas de piano, filha… Espero que gostes!
— E que venhas a ser uma grande pianista — acrescentou o pai.
Muito feliz com a surpresa que a mãe lhe prometera, Sara deu um
abraço apertado aos pais e prometeu que, dentro de pouco tempo, haveria de
tocar para eles.
No final do dia, antes de regressar a sua casa, o primo de Sara foi
ter com ela e perguntou-lhe ao ouvido:
— Ainda ouves música a sair dos teus dedos?
— Às vezes — respondeu ela em voz baixa para mais ninguém ouvir. —
Mas, a partir de amanhã, a música que vai sair dos meus dedos toda a gente a
vai ouvir! Toda a gente!
IV – As aulas de piano
As aulas de piano com a organista Helga tornaram-se os melhores
momentos da semana para Sara. Não faltava a nenhuma, mesmo quando lhe doía a
cabeça ou estava cansada.
A sala de piano de casa da professora era um mundo mágico onde Sara
entrava para se transformar, aos poucos, numa pianista de verdade. Lá, ela
sentia-se mesmo bem, melhor do que num grande armazém de brinquedos ou numa
loja de chocolates! Era uma sala grande, cheia de livros de música e partituras
por toda a parte. Ao centro, o piano brilhava, esperando pelos dedos longos e
esguios de Sara…
Quando cada aula terminava, Sara queria sempre ficar mais algum
tempo ao piano, às vezes imaginando apenas que estava a tocar num concerto para
muitas pessoas. Então, por uns momentos, fechava os olhos em silêncio e, do
fundo do coração, desejava muito tocar músicas que só os anjos conheciam…
Músicas que ainda nem tinham descido do Céu.
Quando chegou o mês em que se festeja o Natal, a professora Helga
disse:
— Temos mais duas aulas para ensaiares a música que vais tocar para
a tua família, no dia vinte e cinco. Quero que te concentres, Sara, para não te
enganares. E a menina lá se pôs a ensaiar, com toda a atenção, a música que a
professora lhe tinha ensinado a tocar no piano.
Ao seu lado, no chão, o gato de Helga assistia ao ensaio, parecendo
encantado com aquela música. Em casa, depois de fazer os deveres da escola,
Sara deitava-se sobre a cama e punha-se a pensar no grande dia em que iria
tocar, pela primeira vez, para a família, em casa dos avós.
Esperava que todos gostassem de a ouvir — tanto como ela gostava de
tocar! Haveria de surpreendê-los. Para isso andava a praticar com tanto
esforço, em casa da professora Helga, de quem se tornara muito amiga.
V – O Natal
Finalmente, chegou o dia 25 de dezembro, o dia mais bonito do ano!
Sara e os pais foram almoçar a casa dos avós, onde já estavam os
tios, o primo e uma prima mais velha que vivia sozinha num bairro antigo da
cidade. Foi o avô quem veio abrir a porta, e logo se sentiu um cheiro muito
agradável aos doces de Natal: sonhos, rabanadas, filhós…
Durante o almoço, Sara mal conseguiu comer o peru assado, tão
ansiosa estava para o momento que se seguiria à sobremesa. Os seus olhos
castanhos e bonitos brilhavam ainda mais do que as velas que a avó colocara
sobre a mesa.
A mãe reparou que ela estava distraída, mas não lhe disse nada,
porque sabia que aquele era um dia muito importante para Sara.
Quando os adultos se sentaram nos sofás para tomarem café ou chá,
Sara foi sentar-se ao piano da avó e, então, fez-se silêncio na sala. Do lado
direito do piano, estava a árvore de Natal que a avó tinha enfeitado com bolas,
fitas coloridas e uma estrela dourada.
Debaixo da árvore, como era costume, estava o Presépio, já antigo e
muito bonito, com as figuras que representavam a Sagrada Família: Jesus, Maria
e José.
Então, a menina olhou para o Menino Jesus e sorriu, dizendo-lhe em
pensamento “Vou tocar esta música especialmente para Ti, porque, hoje, Tu fazes
anos”. E quase pareceu a Sara que o Menino do Presépio também lhe sorriu, mas
achou melhor não dizer a ninguém, porque talvez não acreditassem.
Depois, fez descer as mãos sobre o teclado e começou a tocar para
surpresa de todos…
VI – Um sonho fantástico
Naquela noite de 25 de dezembro, confortavelmente deitada na sua
cama, Sara sonhou que tinha viajado até à pequena cidade de Belém e estava a
chegar à gruta onde Jesus tinha nascido…
No Céu, sobre a gruta, junto de uma estrela muito brilhante (igual
à que estava na árvore de casa dos avós), dois anjos magníficos tocavam flauta
para festejarem o nascimento de Jesus. E que bem que eles tocavam! Dava até
vontade de cantar!
Então, Sara reparou que à sua frente havia um piano e foi sentar-se
para tocar. E a menina tocou — tocou a noite inteira — uma música que, com
certeza, vinha do Céu, porque ela ainda não a conhecia, mas era linda e fez
sorrir o Bebê que estava na gruta, ao colo da Mãe.
Como era bom tocar para Jesus!
Na verdade, Sara até podia tocar de olhos fechados, que não se
enganaria, porque os seus dedos sabiam todas as notas de cor!
Eram mesmo dedos com música!
Maria Teresa Maia Gonzalez
Dedos com Música
Livros Horizonte, 20007, Lisboa
Dedos com Música
Livros Horizonte, 20007, Lisboa
Nenhum comentário:
Postar um comentário