Aventura com asas






Não me recordo muito bem em que ano isto aconteceu. Mas sei que trazia vestido um casaco vermelho com botões de metal amarelo a que eu chamava «o meu casaco à marinheiro», um gorro branco com riscas azuis, um cachecol igual ao gorro e luvas. Luvas ou LUVA? O mais certo era ser LUVA porque eu perdia sempre uma delas, precisamente a da mão direita.
Na verdade, quem poderia fazer a letra bem feitinha, colher azedas no jardim da escola, agarrar a coleira do Tomba-Lobos, o meu cão bem-amado, com aquelas discretas algemas de lã macia a tirarem-me a liberdade de movimentos, a  impedirem  que eu  sentisse  a  frescura  das  flores, o redondo do lápis, a força do cão a puxar-me para a brincadeira? Por isso, de certeza que era só uma luva, apesar dos ralhos da minha mãe:
— Não as tires, que ficas cheia de frieiras! Olha que está muito frio!
E a minha avó, do outro lado da concordância, enquanto me terminava mais um par de luvas quentes e coloridas:
— Para que será tanto trapo? Onde é que já se viu uma criança ser feliz com as mãos tapadas?
E trabalhando com as cinco agulhas a uma velocidade incrível, como se assim o seu protesto fosse ouvido ou como se alguém a obrigasse a fazer dúzias de luvas e ela não estivesse naquela azáfama por sua livre vontade, resmungava ainda:
— As mãos fizeram-se para sentir as coisas que há ao de cima da terra. Isso é que é estar vivo! Vê lá se os animais usam luvas, se têm frieiras… Quantos mais cuidados e esquisitices, pior.
Nesta altura da discussão já eu estava longe e, ou tinha guardado a luva da mão direita no bolso, ou na mala, ou a tinha esquecido na carteira, ou sobre o tanque do quintal, ou nos degraus da escola quando fora jogar às cinco pedrinhas. Portanto, e por tudo isto, de certeza, naquele dia eu só tinha, como quase sempre, apenas uma luva, o que, de resto, pouco interessa para o que vos quero contar.
E que foi assim.
Estávamos na escola ainda a fazer o último ditado quando, subitamente, os vidros da janela tilintaram todos ao mesmo tempo. Parecia que um gigante tinha sacudido a sala. Trinta meninos e meninas levantaram a cabeça, meteram a caneta na boca para tentarem perceber melhor e olharam para a professora que disse, assustada:
— Meu Deus! Será um tremor de terra?
Se foi isso, não mete medo, pensei. Quando tive o sarampo houve um e fartei-me de rir: as chávenas do guarda-louça todas a fazerem tlim-tlim, as tampas das terrinas a levantarem-se e a baixarem-se sem ninguém lhes tocar, as salvas de prata a rolarem para cá e para lá, a cama a tremer como se eu estivesse com frio e a minha avó a andar, feita tontinha, aos zigue-zagues, sem conseguir equilibrar-se, como se tivesse bebido o vinho do Porto da garrafeira.
E como ninguém respondeu, pus o dedo no ar e perguntei:
— Afinal, que barulho foi este?
— Não sei — disse ela, olhando muitas vezes lá para fora e depois para nós.
— Não sei, mas amanhã terminamos o ditado, pois está a escurecer de repente e é capaz de chover ou vir aí uma grande trovoada. Vão para casa depressa, antes que o tempo piore.
E juntava os papéis, fechava os livros, guardava a caixa de giz, vestia o casaco. Num alvoroço, arrumámos também as pastas, vestimos os casacos, enfiámos os gorros, calçámos as luvas (ou a luva?) e ATÉ AMANHÃ, SENHORA PROFESSORA. Pus a mão na coleira do Tomba-Lobos, o único cão do mundo que fez a escola toda até à quarta classe e do qual nunca me separava nem de dia nem de noite.
— Até amanhã, se Deus quiser! Não se demorem! Vão já para casa!
Aí vamos, correndo, rindo, empurrando-nos, imitando o barulho das janelas que nos dera: aquele feriado pequenino – tlim! tlim! tlim! – na alegria dos vinte minutos mais cedo, vinte minutos só para nós, sem ninguém que pudesse assinalar esses nossos passos sempre tão cronometrados pelo coração das mães. Porque só daí a vinte minutos é que os relógios lá de casa começariam a marcar, avisando que eram as horas de sair das aulas.
Depois, segundo a segundo, porque o relógio pontual que é o coração das mães nunca se engana, começava a contagem do nosso percurso: agora deve ter tocado a campainha da saída; agora devem estar na rua da farmácia. Aqui, faz-se um desconto pequenino porque de certeza ficaram a ver a montra da casa das bicicletas ou a montra dos computadores ou a da pastelaria, neste momento já devem estar no Largo do Coreto e depois é só descerem a Rua da Misericórdia. Não tarda, aí estão eles, as calças sujas, as botas desabotoadas, a atirarem as pastas, a pedirem o lanche, a irem brincar ao agarra. Nunca se cansam estas crianças, o dia para elas devia ter quarenta e oito horas e ainda seria pouco…
Mas por tudo isto, que só aconteceria vinte minutos depois se o céu não tivesse escurecido e as janelas não tivessem tilintado, esse espaço livre era festa, era alegria e, sem que o imaginasse, transformou-se na maior aventura da minha vida de criança.
Vou contá-la.
Ainda nem chegáramos à praça quando um vento maluco começou a sacudir o mundo: arrancava ramos de árvores, levantava as saias às mulheres que queriam segurar os xales, agarrar as cestas das couves, apertar os filhos mais novos de encontro ao peito mas faltavam-lhes mãos para tanto gesto. Parecia um circo, um número cômico de filme de Charlot. Os chapéus dos homens voavam já sobre os telhados como se fossem corvos, o Tomba-Lobos rosnava não se sabia a quê ou a quem.
Olhava para o alto, zangado, com os seus belos pelos compridos e sedosos a serem penteados para cá e para lá por uma mão invisível. Segurei-me a ele com força, pois sabia há muito que, viesse o que viesse, junto do meu cão nada me aconteceria de mal. Nisto, ora vejam – mas que susto! – cai-me aos pés a trepadeira da casa do Senhor Gil. Uma trepadeira tão antiga que nem se lhe sabia a idade e que há muito já se confundia com o muro, de pedra e flores todo ele.
O meu cachecol branco era uma asa delta, um rastro de espuma, uma nuvem, o meu sinal. Eu pensava, feliz, sem medo absolutamente nenhum: quem vai acreditar que ando por aqui a passear sobre o céu da minha terra e não sou pássaro? Daqui a uns anos, se eu contar esta história a alguém, irão olhar uns para os outros e dizer: tem tanta imaginação! Se não me chamarem mentirosa, já será uma grande sorte…
Onde irei parar nesta viagem?
Quando a minha Mãe souber que tem uma filha ave, vai ser lindo, vai.
Se nunca mais aterrasse é que era bom! Descobria sozinha que a terra é redonda, ia até à Índia ou ao Brasil e talvez lá encontrasse o Vasco da Gama, o Pedro Álvares Cabral, sei lá quem mais… Nisto, o meu cachecol fica preso num ramo de plátano, o mais alto de todos, aquele donde o meu primeiro namorado colheu uma folha dourada, aquela que está a marcar a lição no livro de leitura e que é o meu segredo.
Eu quase dera a volta ao mundo, de certeza, mas aterrara ali, na Praça de Bernardim Ribeiro. Mesmo no meio! E estava pendurada num galho como se fosse uma pera, uma romã, uma laranja. Que fruto pareceria eu? Uma multidão corre para mim, aos gritos:
— Coitadinha! Vejam se está ferida! Que horror! O que ela voou! Quem chega lá acima? Tirem a criança antes que comece a voar outra vez!
O Tomba-Lobos lá estava também. Empurrara as pessoas e, apoiando as patas no tronco do plátano, deu um salto e agarrou-me o cachecol. Rosnava. O vento levantava-lhe o pelo e já não era um cão, lembrava o lobo mau da história do Capuchinho Vermelho.
Lembro-me de todo este alvoroço, destes gritos desgarrados, destas frases soltas e angustiantes. Parecia um filme fantástico e, no meio deste desatino, eu e o meu cão tentávamos avançar. Mas se dávamos um passo, retrocedíamos cinco. Pensei: talvez isto seja o Gigante Adamastor. Porque esse, dissera-mo a minha professora e sabia-o eu, soprava com tal força que transformara os barcos dos portugueses em casquinhas de noz, como estava escrito no livro de História. Mas Gigantes Adamastores no Alentejo, também era muito esquisito… A ribeira quase não tinha água e mesmo quando ia cheia, mal dava para tapar as pedras e molhar as patinhas das rãs…
Nisto, enquanto eu andava à volta com tão profundos pensamentos, uma rajada mais forte empurrou-me de encontro a coisa nenhuma. A mão soltou-se da coleira do Tomba-Lobos e eu comecei a voar. A voar, vejam bem isto, no meio das folhas dos livros, por entre galinhas que já pareciam cegonhas, trapos velhos, pastas de escola, alguidares de lata, cadernos, cartas de amor, uma bicicleta que pedalava sozinha pelo céu, eu sei lá…
Passei, neste meu voo, pela janela do Senhor Mendonça, continuei a voar, cada vez mais alto, dei uma volta completa à torre da igreja, agarrei-me aos ponteiros do relógio que marcavam meio-dia e depois ficaram nas duas da tarde, ou duas da noite, que tempo era este?, que hora?, que estação do ano?
Continuei a voar.
O Tomba-Lobos, lá em baixo, corria e ladrava para o pontinho em movimento que eu lhe devia parecer. As mulheres também punham as mãos na testa como se fossem a pala de um boné, tentando descobrir-me.
Os homens olhavam e diziam que nunca se vira uma coisa assim. E todos, de braços abertos, levantados para cima, a tentarem prender-me, sem conseguirem alcançar-me.
— Coitadinho! — dizia uma voz. — Parece que percebe tudo…
E outra comentava:
— Nunca se viu um animal com tanta inteligência e tão amigo do dono. Só lhe falta falar!
— Sim, sim — dizia outro. — Mas não se aproximem dele, que não é para brincadeiras quando se trata da sua menina…
— E então agora, como temos medo do cão, a criança vai ficar ali pendurada como um figo maduro? À espera de quê?
Afinal, era um figo maduro o que eu parecia vista lá de baixo. Podiam ter escolhido uma coisa mais simpática, menos mole. Por cima da árvore, quase a tocar-me a cabeça, como se fosse uma pena, passou uma porta inteira. Com aldraba e tudo. Entretanto, o cachecol soltara-se e ficara preso à boca do cão. Em seguida enrolou-se-lhe à volta do pescoço e tapou-lhe os olhos.
Mas eu não me importava. Não tinha medo e achava estranho que com portas a voar, galinhas a voar, árvores enormes a voar, sinos de bronze a tocarem sozinhos, homens gordos às cambalhotas, velhinhas a segurarem-se às pernas dos homens gordos para não voarem com seus xales; camisas azuis, encarnadas, lençóis que pareciam velas de naus antigas, castiçais ainda acesos, ovos que as galinhas acabaram de pôr em pleno voo e que se iam esborrachar no nariz dos curiosos, burros, molhos de feno, um ramo de flores atado com fita vermelha, um jardim inteirinho com a sua pequena estátua e seus bancos pintados de verde, dois velhinhos agarrados como dois namorados para sempre; dizia eu que, no meio desta loucura, deste vento à procura das cavernas antigas em que os deuses os tinham encerrado para evitar coisas assim, era estranho que as pessoas da terra se preocupassem tanto comigo.
Seria amor?
Eu teria voado mais que os outros? Mais alto?
Porque se preocupariam elas?
Eu acho que era amor. Porque a verdade é que, lá no alto, houve um momento, muito pequenino bem sei, mas houve um momento em que eu pensei que nunca mais desceria, que ficaria a voar até ao fim do Tempo, e senti saudades da minha gente, lá tão longe…
Já me tinham acontecido muitas coisas engraçadas na minha vida de oito anos de idade mas, ser colhida duma árvore como uma fruta, um ninho ou um ramo em flor; voar como os pássaros e não ter asas, isso fora o melhor que tudo e, de certeza, nunca mais me voltaria a acontecer.
Nesse instante de breves tréguas alguém me desprendeu – ou colheu? – do galho, segurou ao colo e levou para casa.
O meu coração era um sino contente.
O mundo continuava a desfazer-se em coisas voadoras.
Parecia que, de repente, tudo ganhara asas e nunca mais haveria nada que fosse firme, vertical, seguro, equilibrado.
E quando, passados todos estes anos, alguém velhinho da minha terra fala do dia do ciclone, sinto uma coisa parecida com saudades dessas asas de vento e coragem que nunca mais terei. Nunca mais?


Maria Rosa Colaço
(adaptação)

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