Todo avô toma remédio, usa dentadura e tira soneca depois do almoço. O meu, não.
Não toma pílula nem xarope. E, à tarde, fica acordado, brincando comigo.
Dentadura? Isso ele usa. Mas, de resto, é diferente.
Minha avó também não é igual as
outras. Enquanto toda avó borda e faz bolo de chocolate, ela só costura para
fazer remendos nas roupas e só cozinha no fim de semana. E quase nunca está em
casa. De calça comprida (enquanto todas as avós do mundo usam saia), sai
cedinho para trabalhar e nos deixa sozinhos.
Daí, o guarda-roupa dela vira
elevador. Basta eu entrar e me sentar nas caixas de sapatos para vovô encostar
as portas e, como ascensorista, anunciar:
- Primeiro andar! Roupas e bonecas.
Segundo andar! Balas de goma, móveis e crianças perdidas...
A parede da sala é transformada em
galeria de arte com pinturas emolduradas em fita crepe e, o tapete, em tablado
de exposição de botões raros, que jamais combinariam com qualquer roupa normal.
Ao cair da tarde, na garagem vazia,
enquanto o papagaio e os cachorros conversam misturando latidos, uivos e
risadas, ele espalha alguns pedacinhos de papel pelo chão. É a brincadeira do
Pisei.
- Hã? Como assim?, pergunto. Essa é
nova.
Vovô explica sua invenção:
- Memorize onde estão os papéis.
Feche os olhos e comece a caminhar. Tente pisar em cima deles. Pode ir
perguntando "Pisei?" para facilitar. Ganha o jogo quem pisar em mais
pedaços.
Eu começo.
- Pisei?, pergunto, dando o primeiro
passo, apertando os olhos.
- Não!
- Pisei?, insisto mais uma vez,
depois de caminhar um tiquinho.
- Não!
Ouço um barulho de chaves. Vovó
chega, cansada, do trabalho. Diz "Oi". Sei que é para mim, mas não
posso abrir os olhos para responder. É quebra de regra.
- Tudo bem, vó? Quer brincar de
Pisei?, convido.
- Agora, não, minha riqueza. Vovó
vai descansar.
Vovô continua a me guiar, já sentado
na cadeira de praia, lendo o jornal. Não vi, mas escutei o barulho dela sendo
armada e das folhas nas mãos dele.
Sigo.
- Pisei?
- Pisei?
- Pisei?
E nada.Sinto meus pés tropeçarem em
algo. Abro os olhos. Vovô, a minha frente, de braços abertos, pronto para um
abraço de vitória.
- Mas eu não pisei em nenhum
papelzinho, vô, digo, meio desanimada, mas já engalfinhada e feliz, nos braços
dele.
- O vento foi levando tudo para o
cantinho do portão, ele explica, sorrindo.
- E por que o senhor não me avisou?
A gente poderia ter colado os pedacinhos no chão e recomeçado...
- Porque eu queria que a brincadeira
terminasse com você perto de mim.
Beatriz Vichessi, autora deste conto, é editora-assistente de NOVA ESCOLA.
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