Era só o Sol lançar o seu primeiro
raio por cima dos muros e abriam-se as portas daquela cidade, deixando sair
homens armados. Apenas um punhado de cada vez, sem couraça ou elmo, e a
pé. Mas comandados pó cavaleiros reluzentes e suficientes para tomar um
castelo, conquistar uma terra. Nenhum deles estava de volta à tardinha,
quando as portas eram fechadas. Outros partiriam na manhã seguinte.
Assim é que os homens daquela cidade
nunca sabiam se terminariam seu serviço: o carpinteiro talvez deixasse o
seu lenho por aplainar, se os homens do rei viesse buscá-lo, trocando sua
plaina por uma espada. Talvez queimasse o pão no forno daquela cidade, se
requisitassem o padeiro, roçando-lhe seu avental pelo escudo. A jarra era
abandonada no torno, o tecido esquecido no tear, e as mós do moinho
rodavam, rodavam, sem que nenhum grão lhes caíssem entre os dentes, enquanto o
oleiro, o tecelão, o moleiro saíam pela grande porta, marchando no mesmo passo.
Mas o rei, ah! O rei nunca parava de
assinar. Com sua pena de ganso, seu sinete de ouro, assinava e lacrava
declarações de guerra, alianças, tratados, sem que jamais alguém viesse
interrompê-lo.
Então foi primavera. E, se alguém
naquela cidade tivesse prestado atenção, teria percebido entre o primeiro
cantar dos pássaros e o vibrar das folhas novas um ruído diferente, um
farfalhar ligeiro, roçar de escama ou pano sobre as pedras do chão. E se, tendo
prestado atenção, alguém se debruçasse na janela à noite, veria talvez na densa
sombra dos cantos, nos negros poços cavados pela lua, o vulto esquivo de uma
mulher, a silhueta de outra, e mais uma, escorrendo suas longas saias ,
esgueirando seus véus, negro sobre o negro avançando na escuridão.
Não iam longe as mulheres, não faziam grande coisa. Na mão branca, sob as
vestes, cada uma trazia um graveto, um só. Que depositava aos pés do palácio do
rei. Noite após noite, as mulheres daquela cidade, como pássaras, depositavam o
seu raminho. E porque era primavera, aconteceu que um ramo ou outro estivesse
florido. A princípio, os servos do rei varreram os raminhos. Depois,
vendo que as flores amanheciam frescas no orvalho, e tomados eles mesmos por um
certo encantamento primaveril, consideravam aquilo com uma homenagem e deixaram
que acumulassem, enfeitando os muros cinzentos. Um ramo entrelaçando a outro
crescia lentamente ao redor do palácio o enorme ninho.
Quentes faziam-se as noites com o
chegar do verão. A primeira chama, tão pequena, nem pareceu esquentar mais o
ar. É provável que ninguém sequer a tivesse visto, levada ligeira pela Mao
branca. Uma pequena chama não faz barulho. Nem duas. A segunda veio do outro
lado da cidade, e que a viu certamente a confundiu com um vagalume. Se alguém
percebeu a terceira, ninguém sabe. No liso veludo da noite, uma vela aqui, um
centelha acolá, uma tocha lá longe... vieram chegando, procurando aconchego no
ninho. Uma chama pequena não faz barulho, nem duas. Talvez somente um leve
estalo, rascar seco de quem lambe com língua áspera. Mas, um estalo aqui, outro
acolá, de repente um ronco medonho ergueu-se do ninho, como se em seu miolo acordasse
incontida fera. E roncando, gemendo e retorcendo-se no ar, a imensa
labareda subiu pelos muros, entrou pelas janelas, abocanhou as cortinas,
abraçou todo o palácio.
Arderam os pergaminhos do rei, o
calor secou seus tinteiros. A pena de gancho voltejou por um instante antes de
se desfazer em centelhas. O ouro do sinete escorreu em gotas pela mesa. No
palácio, em chamas, o rei tentava em vão apagar o incêndio com seu cetro, e já
o fogo lhe beijava as vestes.
Lá longe, seu campo recém
conquistado, os homens deitados entre as hastes de cevada voram o horizone
clarear. Mas era do lado do palácio, do lado do poente, e ainda faltava muito
para o amanhecer. Então souberam que não haveria outra batalha no dia seguinte.
E nem foi preciso esperar o sol para encontrar o caminho de volta.
Marina Colasanti.
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