O pássaro era um Airerê. O lagarto
era um Kilezum. Airerê é porção de um. Kilezum é o fragmento. Airerê andando no
céu avistou Airerê na sombra do chão. Coração cai, penas de amor. Kilezum
avistou Airerê na sombra do chão. Coração saltou pras nuvens, rabadas de amor.
Mas Airerê não podia descer, pois a família de Kilezum lambia os lábios ao lhe
ver. Kilezum não podia voar, pois asas não tinha, embora tivesse tentado
fabricá-las. Kilezum colhia as penas de Airerê e as guardava em casa com a
intenção de construir asa. Airerê as lançava, mas Kilezum pedia:
- Não jogue por demais, amado, ou
ficarás pelado e cairás.
- Pois venha logo, amado – respondia
Airerê. Estou ficando cansado. Veja só que tenho asas quando queria bicar teus
passos!
Kilezum desesperado de amor, sem
respaldo da família que lambia os lábios, foi se aconselhar com o sapo. -
Eu, tivesse a tua idade e o teu rabo, disse-lhe o sapo, me contentaria com as
lagartixas do lago, mas como bem sei que ao amor não se pede conveniência, te
aconselho a começar pelo pequeno. Vai aprendendo a pular meu filho, vai
aprendendo.
Kilezum treinou incessantemente. Mas
suas pernas eram curtas e não ajudavam. Foi então que, raivoso por não
conseguir, bateu com força o rabo no chão e no mesmo instante saltou pés-mãos e
Kilezum pulou. Aprendeu depressa. Mortais. Frontais. Ladoais. Saltos que
deixava todos com inveja. E assim era que Airerê ia assistindo ao amado e cada
vez mais cansado Airerê se encontrava.
- Já estou indo, amado! Gritava
Kilezum entre os saltos.
Madrugada, o canto do pássaro
apaixonado e insone. Lá embaixo Kilezum já cansado, com o rabo machucado, cai
de dor e chora de amor derramado, Kilezum adoece. A família lambe os lábios.
Levam-no para o buraco. Chamam Airerê. Dizem que Kilezum está morrendo e
precisa vê-lo. Prometem não comê-lo. Kilezum num gemido febril solta um assobio
que aprendeu com o amado, dizendo que a paixão é vil e que não desça, pois a
família lambe os lábios.
Sete dias. Kilezum ficou entocado.
Sete dias Airerê planou acordado. Não sabia se mais quando era céu que chovia.
O pássaro não cessava nunca seu canto, era a única forma de tocar o amado.
Criou sete temas para os sete dias e as melodias acudiam seu cansaço. As notas
do amor sentido fortificavam suas asas. Ora planando, ora rodopiando no espaço,
Airerê chamava Kilezum.
Foi então que ao raiar do sétimo,
Airerê adormecido em melodia, eis que aparece no buraco um rabo. Sai Kilezum
fortificado. Airerê dá mortais extrovertidos tamanho seu corpassáro se egrava.
Eles riem num riso só. Kilezum beija a sombra de Airerê. Airerê protege o amado
do sol. Eles passeiam pelo vale. A família escondida vai atrás lambendo os
lábios. Trocam a guarda das árvores para que Airerê não pouse. Outros ficam
espalhados pelo mato. Mas os amados não ligam e passeiam enamorados. Airerê
esculpe nuvens com as asas. Kilezum escreve poemas com o rabo. Airerê dança ao
batuque de Kilezum nos bambus. Kilezum beija o bico de Airerê nas folhas.
Airerê sente as mãos de Kilezum no vento.
Mais sete dias passaram, dessa vez,
dias de companhia. Foi quando Kilezum novamente quis ter asas. E a família
emputecida com o lagarto vai atrás lambendo os lábios. Kilezum colhe galhos na
floresta, com cipós amarra as penas de Airerê nas costas e no primeiro vôo vai,
mas volta. A família gargalha lambendo os lábios, Kilezum não se intimida. O
problema são as pernas curtas que não ajudam. Existem cipós amarrados nas
pernas que precisam não ter chão para criarem o movimento dos galhos. Foi
quando Kilezum lembrou do sapo: ... ao amor não se pede conveniência, te
aconselho a começar pelo pequeno. Vai aprendendo a pular meu filho, vai
aprendendo. Num impulso de amor alcançado bateu com o rabo, saltou do chão como
um lagartosapopássaro, as pernas batiam palmas apressadas enquanto a estrutura
de cipó galhos e penas escalavam o vento e pro céu alcançavam.
Kilezum voou, voou, voou ... A
família desacreditou e amaldiçoou Kilezum lambendo os lábios. O chão foi ficando
longe e o lagartosapopássaro ia ao encontro do amado. Era lindo ver o
mundo de cima e os bichos da terra e os rios e as árvores e a família se
estapeando lá embaixo. Os olhos de Kilezum estavam embriagados com a beleza da
terra. Airerê foi a seu encontro. Ali mesmo no colchão infinito amaram-se que o
azulão do céu gozou. O sol gozou.
Bichos da terra e alados uivaram, até
que enfim os amados se tocaram!
Kilezum sentiu o cipó afrouxar dos
lados. As penas de Airerê nas asas do amado como flor despetaladas foram
com o vento e Kilezum ficou botão. Ainda acudiu com o rabo, mas foi inútil.
Olhou no olho de Airerê, agradeceu a Deus e entregou o corpo a queda. Lá do
alto vem caindo Kilezuuuuuuummmmm ... Airerê desesperado resolve salvar seu
irmão, voa para o chão e põe seu corpo embaixo do amado amortecendo a sua
queda. Kilezum vive, Airerê quebrou as asas. E a família... vem atrás lambendo
os lábios.
- Não deixe que me matem. Ceie a
minha carne, pede Airerê ao seu amado.
- Não permitirei que te matem. Cearei
a tua carne, responde Kilezum ao seu amado.
Assim foi que o lagarto comeu o
pássaro. E o paraíso não morreu, pois foi pra dentro do lagarto.
Quanto à família, ainda hoje lambe os
lábios.
Faz parte do livro A Macaúba da
Terra, de Gero Camilo, Editora Dulcina.
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