(Rubem Alves)
Você pode não
acreditar, mas é verdade: muitos anos atrás a terra era um jardim maravilhoso.
É que os anjos, ajudados pelos elefantes, regavam tudo, com regadores cheios de
água que eles tiravam das nuvens. Esta era a sua primeira tarefa, todo dia. Se
esquecessem, todas as plantas morreriam, secas, estorricadas... Para que isso
não acontecesse, Deus chamou o galo e lhe disse:
- Galo, logo que o sol
aparecer, bem cedinho, trate de cantar bem alto para que os anjos e os
elefantes acordem...
E é por isto que, ainda hoje, os galos cantam de manhã...
Flores havia aos milhares. Todas eram lindas. Mas, infelizmente, todas elas
eram igualmente vaidosas e cada uma pensava ser a mais bela. E, exibindo as suas
pétalas, umas para as outras, elas se perguntavam, sem parar:
- Não sou a mais
linda de todas?
Até pareciam a madrasta da Branca de Neve. Por causa da vaidade,
nenhuma delas ouvia o que as outras diziam e nem percebiam que todas eram
igualmente belas. Por isso, todas ficavam sem resposta. E eram, assim, belas e
infelizes. No meio de tanta beleza infeliz, entretanto, certo dia uma coisa
inesperada aconteceu. Uma florzinha, que estava crescendo dentro de um botão, e
que deveria ser igualmente bela e infeliz, cortou uma de suas pétalas num
espinho, ao nascer. A florzinha nem ligou e vivia muito feliz com sua pétala
partida. Ela não doía. Era uma pétala macia. Era amiga. Até que ela começou a
notar que as outras flores a olhavam com olhos espantados. E percebeu, então,
que era diferente.
- Por que é que as outras flores me olham assim, papai, com
tanto espanto, olhos tão fixos na minha pétala...?
- Por que será? Que é que
você acha? - perguntou o pai.
Na verdade, ele bem sabia de tudo. Mas ele não
queria dizer. Queria que a florzinha tivesse coragem para olhar para as vaidosas
e amar a sua pétala.
- Acho que é porque eu sou meio esquisita... - a florzinha
respondeu.
E ela foi ficando triste, triste... Não por causa da sua pétala
rachada, mas por causa dos olhos das outras flores.
- Já estou cansada de
explicar. Eu nasci assim... Mas elas perguntam, perguntam, perguntam...
Até que
ela chorou. Coisa que nunca tinha acontecido com as flores belas e infelizes. A
terra levou um susto quando sentiu o pingo de uma lágrima quente, porque as
outras flores não choravam. E ela chamou a árvore e lhe contou baixinho:
- A
florzinha está chorando. E a terra chorou também.
A árvore chamou os pássaros e
lhes contou o que estava acontecendo. E, enquanto falava, foi murchando, esticando seus galhos num longo lamento, e continua a chorar
até hoje, à beira dos rios e dos lagos, aquela árvore triste que tem o nome de
chorão. E das pontas dos seus galhos correram as lágrimas que se transformaram
num fiozinho de água... Os pássaros voaram até as nuvens.
- Nuvens, a florzinha
está chorando.
E choraram lágrimas que se transformaram em pingos de chuva...
As nuvens choraram também, juntando-se aos pássaros numa chuva enorme, choro do
céu. As lágrimas das nuvens molharam as camisolas dos anjinhos que brincavam no
céu macio. E quiseram saber o que estava acontecendo. E quando souberam que a
florzinha estava chorando, choraram também... E Deus, que era uma flor, começou
a chorar também. E a sua dor foi tão grande que, devagarinho, como se fosse
espinho, ela foi cortando uma de suas pétalas. E Deus ficou tal e qual a
florzinha. E aquele choro todo, da terra, das árvores, dos pássaros, dos anjos,
de Deus, virou chuva, como nunca havia caído. O sol, sempre amigo e brincalhão,
não aguentou ver tanta tristeza. Chorou também. E a sua boca triste virou o
arco-íris... E as chuvas viraram rios e os rios viraram mares. Nos rios
nasceram peixes pequenos. Nos mares apareceram os peixes grandes. A florzinha
abriu os olhos e se espantou com todo aquele reboliço. Nunca pensou que fosse
tão querida. E a sua tristeza foi virando, lá dentro, uma espécie de cócegas no
coração, e sua boca se entortou para cima, num riso gostoso... E foi então que
aconteceu o milagre. As flores belas e infelizes não tinham perfume, porque
nunca riam. Quando a florzinha sorriu, pela primeira vez, o perfume bom da flor
apareceu. O perfume é o sorriso da flor. E o perfume foi chamando bichos e mais
bichos... Vieram as abelhas... Vieram os beija-flores... Vieram as
borboletas... Vieram as crianças. Um a um, beijaram a única flor perfumada, a
flor que sabia sorrir. E sentiram, pela primeira vez, que a florzinha, lá
dentro do seu sorriso, era doce, virava mel...
Esta é a história do nascimento
da alegria. De como a tristeza saiu do choro, do choro surgiu o riso e o riso
virou perfume. A florzinha não se esqueceu de sua pétala partida. Só que, deste
dia em diante, ela não mais sofria ao olhar para ela, mas a agradava, como boa
amiga. Quanto aos regadores dos anjos, nunca mais foram usados. De vez em
quando, olhando para as nuvens, a gente vê um deles, guardado lá dentro, já
velho e coberto de teias de aranha... Enquanto a florzinha de pétala partida
estiver neste mundo, a chuva continuará a cair e o brinquedo de roda em volta
do seu sorriso e do seu perfume não terá fim...
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