A seca assolava a floresta como nunca. Os rios secavam, os lagos eram
lama só, as árvores só tinham folhas esturricadas e os animais morriam de sede.
Não era mais possível suportar a situação. Os animais reuniram-se e foram
consultar um velho corujão, ave sábia e duradoura que tudo parecia saber.
O corujão ouviu as queixas, sacudiu as penas lentamente e revelou:
– Isso é praga dos céus. Tupã está furioso e quer nos castigar. Vai tudo
secar, vai tudo acabar, por culpa das maldades de algum de nós!
– Maldades? Mas quem fez tais maldades a ponto de atrair a cólera de
Tupã?
– Isso eu não sei. Só sei que, para acalmar os bofes do poderoso Tupã,
só oferecendo um animal em sacrifício!
– Em sacrifício? Quer dizer... mortinho da silva?
– Mortinho da silva!
– E... que animal deve ser sacrificado?
– Justamente aquele dentre nós que mais maldades tem na consciência!
Preocupadíssimos, reuniram-se os animais em assembleia. Qual deles era o
pior? Quem deveria dar o pescoço para a salvação de todos?
Levantou-se o leão, com a pompa e a majestade que dele se espera.
– Companheiros animais, sou eu quem deve ser sacrificado. Sou o mais
terrível, o mais malvado, o pior de todos. Quantas vezes devorei rebanhos
inteiros de ovelhinhas indefesas? Quantos veadinhos órfãos já deixei,
matando-lhes os pais? Para falar a verdade, até mesmo a vida de alguns pastores
e boiadeiros me pesa na consciência. Assim sendo, não há dúvida: para o bem
comum, ofereço a minha vida!
Deu um nó de emoção e pavor nas gargantas de todos que ouviram tão
emocionado discurso. E foi com emoção na voz que o corujão levantou-se:
– Muito honrados estamos todos nós com oferta tão generosa, nobre rei
leão. Mas, se uma injustiça cometermos, maior ainda será a ira de Tupã. E
injustiça é o que cometeríamos se aceitássemos o desprendimento de nosso rei e
de sua vida dispuséssemos. Pois nada do que vossa majestade declarou constitui
crime. Dizimar rebanhos de ovelhas? Ora, para que foram feitas as ovelhas senão
para serem dizimadas? Pois não dizimam elas toda a grama, fazendo com que todos
nós corramos o risco de andar sobre a terra nua? Abater os pais dos veadinhos?
Mas como aprenderiam eles a tornarem-se adultos, a crescer independentes, se
para sempre tivessem seus pais a seu lado, fazendo-lhes todas as vontades e
impedindo-lhes de aprender com seus próprios esforços? Devorar pastores e
boiadeiros?
Mas para que servem essas criaturas, senão para perseguir-nos, para
caçar-nos, para dizimar nossas florestas? Não, majestade. Em vez de condená-lo,
devemos todos nos levantar em agradecimento por serviços tão nobres prestados
por vossa majestade à nossa coletividade!
De pé, emocionados, todos os bichos aplaudiram entusiasmadamente o
discurso do corujão e a nobreza do leão.
Levantou-se então o tigre e, de olhos baixos, confessou:
– Devo eu sacrificar-me. Pois criminoso sou. Confesso que, muitas vezes,
abati sem piedade filhotes indefesos dos menores animais, por preguiça de
procurar presas maiores.
Muitas vezes tocaiei e matei parentes de muitos de vocês. Houve até uma
vez que comi a noiva capivara, depois de ter servido de padrinho em seu
casamento! Sou mesmo um bicho terrível e aqui me ofereço em sacrifício!
Novamente o corujão não concordou:
– Vossa alteza, o príncipe da floresta, muito nos honra com a oferta,
mas não podemos concordar. Ao devorar filhotes, vossa alteza ajudou no controle
do número de habitantes da floresta que, do contrário, ficaria super povoada.
Almoçou parentes nossos? Talvez a sogra? Ou o cunhado?
O que fez foi um favor, pois sogras e cunhados só trazem aborrecimento.
Devorou uma noiva? Foi um bem. E se ela fosse infeliz no casamento? Poupou
vossa alteza a coitadinha de sofrer! Para o nosso querido tigre, príncipe desta
floresta, eu peço uma salva de palmas!
Sob os aplausos da plateia, sentou-se o tigre. A onça, a raposa e outras
feras deram seus depoimentos e a todas o corujão inocentou. Até que chegou a
vez do burro.
– Muita coisa não tenho do que me arrepender. Só me lembro de, uma vez,
aproveitar a soneca do vigário e comer um repolhinho da horta lá da igreja...
Deu um pulo o corujão:
– Eis aqui a causa de todos os nossos males! Um ladrão covarde e
despudorado que ousou assaltar a horta da igreja! Um criminoso sem igual! Não
só a cólera de Tupã, como também a nossa ira deve se abater sobre o vilão!
E o pobre do
burro, por não ter nenhum poder, foi escolhido para o sacrifício...
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