Um rei vivia muito
desconfiado da sua segurança porque os seus súditos falavam amiudamente em
república. De vez em quando apareciam rumores que o impressionavam.
Abalado por esses
rumores resolveu pessoalmente saber o estado do seu reino saindo disfarçado em
pobre para percorrer os recantos da cidade. Desejava saber o que dele diziam e
o que pretendiam fazer do seu reino e do seu rei.
Uma noite, em uma bodega
onde se encontrava, aproximou-se um soldado lastimando-se:
— É uma miséria a vida
que eu levo: sou soldado há mais de vinte anos e o meu ganho não dá para
sustentar a minha família. Tenho uma ninhada de filhos magros de fome que
passam. O rei não olha para o seu povo, a opressão é grande, enquanto o rei se
diverte. Vivo morrendo de fome com os meus filhos e a minha mulher morando em
uma casa desgraçada.
O taberneiro querendo
associar-se ao soldado, replicou:
— É mesmo; o nosso rei é
um miserável, não faz caso do seu povo.
— Alto lá! — disse o
soldado — Você não pode falar do meu rei; eu posso porque sou soldado, vivo do
estado, você não pode porque não é nada no governo. Cale-se e bote uma bicada
para mim.
Tomando o copo, virou-se
para o rei que estava vestido pobremente e irreconhecível: — Camarada você toma
um pouquinho. Venha de lá, beba primeiro.
O desconhecido
escusou-se, ponderou que não queria beber, mas, diante das exigências do
soldado tomou o copo e provou da pinga.
O soldado continuou na
sua lamúria:
— Vim comprar umas
coisinhas para os meninos não dormirem com fome, mas como não tenho dinheiro
vou empenhar meu facão; no fim do mês, quando receber ordenado, venho tirá-lo
do prego. Bodegueiro, fique com o meu facão e me dê em troca, até o fim da
semana, um pouco de café, açúcar, bacalhau e farinha.
O negócio foi feito. Ao
deixar a bodega o soldado convidou o desconhecido para acompanhá-lo.
- Quero, meu
amigo, mostrar a minha casa e a minha gente, você vai ver quanta miséria.
Foram os dois. A casa
era de fato um mocambo desmantelado cheio de meninos magros com uma mulher
andrajosa e magra também entre eles.
- Prepare a ceia, mulher - disse o soldado, entregando o que trouxera da venda.
Enquanto a mulher
preparava a ceia o soldado conversava com o desconhecido que o acompanhara:
— Eu empenhei o meu
facão nas vésperas da festa de Nossa Senhora da Conceição, eu tenho de formar e
o facão vai me fazer uma falta danada, mas eu já pensei como devo fazer. Tenho
um cabo velho de um facão que se quebrou, colocarei uma lâmina de pau e com ele
irei à parada. Quem sabe o que está dentro da bainha?
A ceia na mesa o soldado
insistiu com o companheiro para fazer uma perninha. Convite aceito pelo
desconhecido, que comeu o que havia; e depois deixou a hospedaria sem dizer
quem era, onde morava e de que vivia.
No dia da parada o rei
passava em revista da tropa formada em frente do palácio, fazendo esforço para
descobrir o soldado com quem conversara dias atrás. Tanto procurou até
descobri-lo. Parando em sua frente gritou com majestade:
— Soldado! dê um passo a
frente.
Virando para o capitão
da companhia ordenou:
— Capitão dê um passo a
frente.
Quando os dois militares
emparelharam-se o rei ordenou:
— Soldado tire o seu
facão e mate imediatamente o seu capitão!
O soldado sentiu-se
perdido mas teve um lampejo de inteligência dizendo:
— Obedeço a ordem de
vossa majestade, — ao retirar o facão gritou com misticismo:
— Valei minha Nossa
Senhora da Conceição! Que o meu facão vire pau. Pra eu não matar o meu capitão!
Retirou o facão da
bainha ante o espanto geral a lâmina estava transformada em madeira.
"Milagre!" gritaram todos.
O rei riu-se e o
promoveu a sargento.
(César, Getúlio. "O soldado e o rei". Folha da
Manhã. Recife, 12 de novembro de 1950)
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