O sacrifício de uma criança








Há muitos anos, em Florença, na Itália, havia um pobre empregado de estrada de ferro que vivia com dificuldades para sustentar sua mulher e seus muitos filhos. Para melhorar a renda doméstica, arranjou um trabalho extra de copista, para fazer à noite. Uma editora pagava-lhe três liras por quinhentas cópias de endereços de assinantes nos envelopes em que os jornais e as revistas seriam entregues. Depois de muitas horas de trabalho na estrada de ferro, passar outras horas copiando esses endereços, com letra grande e caprichada, deixava-o esgotado. Vivia queixando-se à família:
– Minha vista já está cansada. O trabalho que faço à noite está acabando com os meus olhos.
Júlio, o filho mais velho, de apenas dez anos, suplicou ao pai:
– Deixe-me trabalhar em seu lugar, papai. Sei escrever igualzinho ao senhor.
– Não, meu filho. Você precisa estudar. Quero que você tenha um futuro melhor do que eu tive.
O menino, sem nada dizer a ninguém, imaginou um modo de auxiliá-lo. Sabia que, por volta da meia-noite, o pai suspendia o trabalho e ia dormir.
Naquela noite, esperou que todos se deitassem e dirigiu-se à sala. Acendeu o lampião de querosene, sentou-se à mesa de trabalho, onde havia uma pilha de envelopes em branco e uma lista com os endereços, e começou a escrever, imitando cuidadosamente a letra do pai. Horas mais tarde, depois de conseguir endereçar quase duzentos envelopes, apagou o lampião e voltou para a cama, caminhando na ponta dos pés.
De manhã, como fazia sempre, o pai contou os envelopes endereçados e bateu no ombro do filho, bem-humorado:
– Júlio, meu trabalho agora anda rendendo mais. Pelo visto, ainda tenho muito ânimo. Ontem à noite, em duas horas, trabalhei três vezes mais do que na véspera!
Na noite seguinte, vibrando com o sucesso do seu plano, o menino tornou a ocupar o lugar do pai na mesa da sala. E assim fez nas outras noites, sem que o pai de nada desconfiasse. Uma vez, apenas, o pai comentou:
– Não sei como se gasta tanto querosene nesta casa!
E Júlio continuou com seu trabalho secreto, levantando-se pela manhã cada vez mais cansado. Por isso, na escola, deu de cochilar sobre os livros. Não conseguia aprender bem as lições e suas notas foram baixando. O pai chamou-o um dia e repreendeu-o severamente. Júlio ouviu a censura com o coração amargurado.
Dias depois, o pai chegou em casa alegre como nunca, e falou para a família:
– Este mês, com o meu trabalho noturno, ganhei trinta e duas liras mais que no mês passado! Eu estaria completamente satisfeito, não fosse a vagabundagem daquele ali! – e apontou para Júlio...
O menino engoliu a tristeza que as palavras do pai lhe trouxeram e tentou a duras penas melhorar nos estudos. Mas, por mais que tentasse, não conseguia recuperar as boas notas na escola, porque não lhe sobravam forças para estudar, depois das horas trabalhadas às escondidas. Certa manhã, o pai perguntou, furioso:
– Júlio, por que está ficando tão descuidado nos estudos? Não tem pena de seus pais? Quer ser um vagabundo?
– Não, papai – respondeu o menino, quase chorando.
– Você conhece bem a situação da nossa família. Preciso da boa vontade e do sacrifício de todos. Eu mesmo tenho de trabalhar em dobro para sustentar esta casa e você  não tem consideração pelo meu esforço. Filho ingrato!
Com o coração doendo pelas palavras do pai e com os olhos ardendo, Júlio prosseguia no seu trabalho noturno. Doía-lhe a indiferença com que o pai passou a tratá-lo.
Certa noite muito fria, o menino, como sempre, levantou-se em silêncio e, depois de agasalhar-se, dirigiu-se para a mesa de trabalho do pai. Naquela noite, porém, quando estendeu o braço para molhar a pena no tinteiro, sem querer derrubou um livro no chão, quebrando o silêncio da casa.
Encolheu-se de susto, temendo que o pai acordasse. Esperou um momento e, como nada ouvisse, continuou trabalhando sem perceber que alguém se aproximava às suas costas. Despertado pelo barulho, o pai chegou devagarinho e veio ver o que tinha acontecido. Ao abrir de leve a porta, que cena emocionante! Lá estava o filho inclinado sobre a mesa de trabalho, preenchendo os envelopes para auxiliá-lo! Compreendeu então a razão da negligência do filho nos estudos e sentiu uma dor imensa, lembrando-se das censuras que lhe fizera...
O menino foi de repente envolvido por dois braços que o apertavam carinhosamente.
– Papai! Papai, peço-lhe que me perdoe... – exclamou, surpreso.
Chorando como uma criança, o pai lhe disse:
– Não é você, meu filho, quem deve pedir perdão... Eu é que lhe peço que me perdoe por tê-lo julgado um estudante preguiçoso! Venha comigo.
E levou-o até junto da mãe, que acordara com o ruído das vozes.
– Beije nosso filhinho... – dizia o homem, sem conter a emoção. – Beije este bom menino que passa as noites em claro ajudando-me em meu trabalho, apesar das injustas repreensões que recebia!
A mãe apertou o filho nos braços e, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe:
– Vai dormir, meu filho. Vai descansar. Que Deus te abençoe!
O pai levou o menino ao quarto, deitou-o e esperou que dormisse. Exausto, Júlio pegou no sono na mesma hora. Quando abriu os olhos, o menino viu a cabeça branca do pai, que ali havia passado a noite e ainda dormia serenamente, com a cabeça apoiada em seu coração...

Adaptação de Pedro Bandeira de um dos contos do livro
“Coração”, de Edmondo De Amicis

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