Vida e morte do Malazarte








Dizem que Malazarte era o diabo. Pois não era e tanto não era que um dia, depois que Pedro Malazarte deu pousada a Jesus Cristo, este como sempre acompanhado de Pedro — São Pedro, o chaveiro — concedeu-lhe, em paga, o direito de fazer três pedidos.
— Quero — pediu prontamente Malazarte — que quem subir nessa figueira (apontou para uma figueira no quintal) não possa descer sem que eu mande.
— Concedido.
— Quero...
— Pede o reino do céu. — Aconselhou São Pedro.
— Quero — disse o outro sem fazer caso da interrupção — que quem entrar no meu surrão não possa sair sem minha ordem.
— Concedido.
— E quero...
— ... o reino do céu. — Insinuou São Pedro.
— Que reino do céu, o quê?! Deixe de ser bobo! Quero que ninguém possa por a mão no meu boné. Só eu.
— Concedido.
Somente depois que eles partiram lembrou-se que não tinha pedido nada.
— Não há de ser nada.
Chamou o diabo, pediu-lhe dinheiro e prometeu-lhe a alma, em troca.
— Daqui a dez anos pode vir me buscar.
Daí a dez anos, o diabo apareceu.
— Vou fazer o meu testamento. Você, se quiser, pode subir naquela figueira e ir comendo uns figos enquanto me espera.
O diabo assim fez e, quando quis descer da árvore, não pôde.
Esforçou-se, ameaçou, pediu, e, por fim. Pedro soltou-o com a condição de lhe deixar mestre satanás mais vinte anos de vida. Daí a vinte anos o diabo voltou. Pedro disse:
— Meu surrão está pronto. Quer me ajudar a amarrá-lo?
O diabo foi ajudar, mas quando estava bem perto, Pedro o empurrou para dentro. Por mais que esperneasse, não conseguiu sair. Então Pedro disse:
— Você pode ir embora, mas está desfeito o nosso trato. Nunca mais me ponha os pés aqui.
O diabo deu o fora. E Pedro acabou indo para o céu, por artes do bonezinho. Foi assim: Morreu. Apareceu no céu e São Pedro bateu-lhe com a porta na cara. "Você não quis pedir o reino do céu, agora aqui você não entra".
— Está bem — resignou-se Malazarte. — Então vou para o inferno.
Foi ao inferno e o diabo não o quis lá. Voltou ao céu e pediu a São Pedro que, já que não era possível entrar que o deixasse ficar sentado à porta. São Pedro encolheu os ombros.
— Se é só isso...
Pedro ficou. Não demorou muito aproveitou-se de uma distração do santo chaveiro e atirou o bonezinho para dentro. Acontece que ninguém podia pegar no bonezinho. E acontece também que quem entra no céu não pode mais sair — pormenor típico de várias histórias populares do tipo desta. E, assim, o Malazarte entrou para pegar o boné e ficou no paraíso.

(Vale do Paraíba, 1940, informante idosa, analfabeta.)

A mesma história é conhecida na Espanha. Foi recolhida uma variante em Rio Tuerto, Santander, por Aurélio M. Espinosa, que a registrou em Cuentos populares españoles. Nossa versão, a personagem central é, em vez do Malazarte, Juan Soldão...
Decalcado no mesmo lema, o que demonstra a sua difusão na França foi o conto Federico, de Prosper Merimée.
Vim a saber do fim — por assim dizer — finalíssimo — do Malazarte, isto é, como Deus se arranjou com ele no céu, alguns anos mais tarde de um caipira mentiroso da alta sorocabana.
— Quando ele entrou no céu, por obra e arte do tal bonezinho mágico, cujo poder lhe foi conferido por Jesus, em suas andanças pelo mundo, Deus Nosso Senhor, pai de todos falou:
— Não quero que você fique aqui dentro, virando a cabeça de tudo quanto é santo. Já chega a Pedro que você enganou.
Arranjou um montão de trigo e deixou o Malazartes a um canto, contando os grãos, para que ele não tenha tempo de conversar com mais ninguém.
Há uma outra lenda que justifica medida do Todo-Poderoso. Segundo referem alguns dentro da tradição oral do Vale do Paraíba, Pedro sentou-se às portas do paraíso e manhosamente puxou prosa com São Pedro:
— Escute aqui, velhinho...
São Pedro encrespou tempestuosamente as sobracelhas.
— Escute aqui, faz tempo que o senhor é chaveiro?
— Desde que subi ao céu, com Jesus Cristo, meu mestre.
— Seu cargo é vitalício?
— É o que?
— Seu cargo é permanente? O senhor foi nomeado para toda a eternidade?
— Decerto. — Respondeu o velho chaveiro, impondo orgulho.
— E como é que o senhor sabe disso?
— Ora, o Senhor me disse.
— E se ele mudar de opinião?
— Não mudará.
— Mas se mudar? Tudo pode acontecer.
O velho coçou a cabeça.
Malazarte insistiu:
— O senhor não tem nenhum documento, nenhum contrato, que garanta seus direitos? O senhor tem só um entendimento de boca? E se um dia o senhor se desentender com o Mestre? E se ele resolver pôr um chaveiro mais moço, no seu lugar?
— É mesmo.
São Pedro trancou cauteloso a porta e foi para dentro. Procurou Jesus e perguntou-lhe:
— Senhor, eu sou chaveiro, para a eternidade?
— Naturalmente.
— O senhor não acha melhor... o senhor não vê... eu não tinha pensado nisso... o senhor compreende... minha posição... o senhor não acha...
— Que é isso, Pedro? Desembuche de uma vez.
— O senhor não acha bom nós dois assinarmos um contrato?
Cristo franziu a testa e ordenou:
— Traga o Malazarte aqui, que ele vai ficar contando areia, para não ficar enchendo a sua cabeça e a de todos os meus santos.
Parece que a origem da tarefa de contar grãos e contar areia é peninsular. Constantino Cabal — Mitologia ibérica — cita o caso de um trasgo de mãos furadas. Puseram-no a contar grãos de linhaça e ele não pôde, por causa das mãos furadas. Leite de Vasconcelos dá em Tradições populares de Portugal, notícia de um curioso fradinho de mão furada, que entra pelo buraco da fechadura e dá pesadelos. A antiga lenda peninsular do duende de mãos furadas se bifurca com a mudança de continente. Um ramo encontrando-se com a do saci dá o diabinho de mãos furadas. O outro encontra Pedro Malazarte e origina a lenda que afirma: Pedro Malazarte está no céu contando trigo. 


(Guimarães, Ruth. "Vida e morte do Malazarte". Revista do Globo. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1949)

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