Era uma vez um cavalinho branco. Mas não era todo branco o cavalinho branco. Tinha estrelas azuis, muitas estrelas azuis espalhadas por todo o corpo e uma estrela maior no lugar do coração. Era um cavalinho branco às estrelas azuis.
Roda, roda, roda
na grande roda o cavalinho.
Roda, roda, roda
Corpo de estrelas, flor no focinho.
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Este era um cavalo especial, um cavalo de carrossel.
Não andava contente com a sua vida, o cavalinho branco às estrelas azuis. Aquilo de ter de fingir que trotava, sempre à roda, sempre à roda, aborrecia-o. O barulho da música gritada pelos alto-falantes e as vozes dos homens que apregoavam farturas e as luzes que balançavam dos fios e tremiam, tremiam, e o carrossel, dia e noite, a rodar, a rodar, mais uma volta e mais outra e outra — uf! — punham a cabeça do cavalinho branco também às voltas.
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— Não aguento mais estas tonturas — dizia o cavalinho branco. — Vou mudar de vida.
E mudou.
Correu pelos campos, saltou valados, chapinhou nos regueiros e bebeu a água fresca das fontes. Bem bom.
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— Eh, cavalinho, queres um torrão de açúcar?
Ele queria e veio buscá-lo. Então o senhor que usava botas de montar fez-lhe uma festa no pescoço e disse:
— Anda comigo que, mais logo, quando chegarmos ao circo eu dou-te o açúcar…
Lá foram, o cavalinho num trote curto de cavalinho bem disposto e o senhor de bigodes retorcidos a retorcê-los ainda mais, muito sisudo.
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Quando chegaram ao circo, o senhor dos bigodes meteu o cavalinho numa espécie de jaula e disse-lhe assim:
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Um dos números mais aplaudidos do espetáculo era o do ilustre cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo e os seus cavalos amestrados. Os cavalos emplumados e de arreios dourados trotavam à volta da pista, saltavam ao arco, dançavam ao som de uma valsa e ficavam muito quietos, como se fossem estátuas, quando o ilustre cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo fazia estalar o chicote, de certa maneira. Eram, aqui fica dito, cavalos muito bem mandados.
Nessa noite, havia um número novo, um cavalinho engraçado, que o domador Arnaldo de Aguinaldo esperava que viria a ser a “estrela” mais brilhante da companhia. E com razão, pois então! Sim, porque não fazia sentido que um cavalinho branco, com o corpo coberto de estrelas, não fosse a “estrela” maior da companhia…
Dava gosto vê-lo, ao cavalinho, a trotar à roda, à roda, sempre à roda da pista, e o senhor cavaleiro Arnaldo de Aguinaldo no meio, de braços abertos, com o chicote numa das mãos e o chapéu alto na outra, como se quisesse dizer: “Admirem, excelentíssimos senhores, as maravilhas que eu tenho para mostrar. Isto vale ou não vale o preço de um bilhete?”
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Roda, roda, roda
roda que roda num redemoinho
roda, roda, roda
finge que voa o cavalinho.
Pois fingia, realmente, mas não voava. Que triste sina esta a do cavalo branco às estrelas azuis. Não bastavam as voltas que tinha dado, e tantas, no carrossel?
Noites e noites rodou, trotou, dançou na pista do circo… Até que um dia se fartou.
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Nem o torrão de açúcar, sempre prometido, sempre adiado, foi reclamar. Dali não levava nada.
Voltou a correr pelos campos, a saltar valados, a chapinhar nos regueiros… Que bom!
Mas, ao que dizem, o que é bom não dura sempre… Um dia, um lavrador que o vira saltar para dentro da herdade, correu atrás dele e, com algum custo, prendeu-o a uma nora. Mas primeiro tomou o cuidado de lhe tapar os olhos com uma venda.
— Por causa das tonturas — explicou ele.
Isso que fazia? Tanto já o cavalinho tinha andado à roda, que se tinha curado das tonturas. Do que não gostava era de andar sempre a pisar o mesmo caminho. Não haveria outro emprego para um cavalo branco com estrelas azuis?
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Roda, roda, roda
na giga-joga o cavalinho
roda, roda, roda
e sempre à roda mói o caminho.
Talvez fosse possível arranjar outra profissão mais agradável. Qual seria? Deu voltas e voltas e decidiu desempregar-se mais uma vez, sem dar contas a ninguém. Libertou-se da nora, nem sabemos como, e tomou por uma estrada que a algum sítio devia levar.
Pelo mesmo caminho ia um cavalo castanho a puxar uma carroça.
“E se eu fosse também um cavalo de carroça?”, pensou o cavalinho branco às estrelas azuis.
Olhou para o cavalo castanho e viu-o tão triste e tão atormentado pelas moscas, que desistiu.
Em sentido contrário vinha um esquadrão de cavalaria da Guarda Republicana. Que lindos cavalos e que imponentes cavaleiros! “E se eu fosse atrás deles?”, lembrou-se o cavalinho.
Mas o suor escorria do pescoço dos cavalos. Era de tanto terem galopado. E — reparou ainda o cavalinho — as estrelas de metal que os cavaleiros traziam nas botas deixavam um rastro sangrento na barriga dos cavalos. Chamavam àquilo as esporas…
“Ah, sendo assim já não vou”, decidiu o cavalinho branco às estrelas azuis.
Continuou o seu caminho. Foi ter a uma cidade e a um grande largo onde um cavalo de bronze reluzia à luz do sol.
O cavalinho, ao vê-lo, exclamou:
— Ora aqui está um emprego que me calhava. Ninguém nos incomoda e, uma vez por outra, até nos tiram um retraio.
Respondeu-lhe, de cima do seu pedestal, o cavalo de bronze:
— Nem penses nisso. Estou aqui à chuva e ao sol, todo o tempo, e com uma pata no ar, sempre na mesma posição, a fingir que ando, mas não ando, e tu ainda achas que o emprego é bom!? Sonha com outra coisa, mas nunca queiras ser estátua.
Então que havia ele de ser? Sim, que modo de vida podia convir a um cavalinho branco às estrelas azuis?
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Deu voltas à cidade, deu voltas à cabeça e, por fim, mirando a montra de uma casa de brinquedos, descobriu a sua vocação — iria ser cavalo de brincar. Postou-se à porta, ao lado dos cavalos de pasta e dos cavalos de madeira e esperou que alguém o quisesse levar. Não esperou muito.
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O cavalinho branco às estrelas azuis anda agora nas suas sete quintas. É, agora, cavalo de baloiço, cavalo de balancé… Emprego melhor não conhece. Finge que é cavalo de carrossel, cavalo de carroça, cavalo da Guarda, cavalo de circo, mas é apenas um brinquedo nas mãos de um menino. Bem bom.
Autor: António Torrado
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