A selva e o mar





... Toda separação é triste.
Ela guarda memória de tempos felizes
(ou de tempos que poderiam ser felizes...).
E nela mora a saudade.
A saudade ficou no rosto de uma criança...
O que é o amor...

Amar é querer trazer para bem perto
aquilo que está longe,
abraçar, esforço de pôr dentro
 aquilo que está fora,
beber, com prazer, aquilo que fez
os olhos sorrir...
... Pensava que o corpo era feito de carne,
de sangue e de ossos?
Puro engano.
Nosso corpo é feito daquilo
que o amor pôs lá dentro.
E onde o amor quis, mas não pode,
ficou um vazio,
que é onde mora a saudade...
(Você já sentiu isso, o bem
que um perfume faz,
num lugar dentro da gente
que a gente nem sabe onde fica?)

 ... Seu ventre, lugar de mistérios,

como a vida secreta do mar,
caverna escura onde nadavam peixes minúsculos
e invisíveis sementes ficavam à espera.
Mas havia uma coisa que ela não podia entender:
era uma tristeza,
suave,
nostalgia...
Havia os Vazios,
Desejos,
Ausência imensa,
Saudade de algo que lhe faltava.
E ela sonhava com coisas longínquas,
e as amava:
florestas que nunca vira...
Ela amava o mar que nela morava,
e a selva, ausência,
pedaço que lhe faltava.... Seus olhos se voltavam então
para o alto das montanhas, ao longe,
e viam as silhuetas de árvores
ao céu, e imaginavam
beleza e mistérios diferentes
daqueles do mar.
E amava a floresta
com que sonhava.

... Com árvores velhas de muitos anos,
frutas silvestres de muitas aves,
musgos macios de muitos verdes,
borboletas de asas de muitas cores,
aves de vozes de muitos cantos,
grilos ocultos em muitas noites,
correntes de águas de muitas pedras,
flores silvestres de muitos cheiros,
terras macia de muitos brotos,
vidas que renascem de muitas formas...
Amava seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiquíssimo,
sobre cujo silencioso despertar verde-luz
seu coração se erguia
Mas ele também tinha
um sentimento triste, vazio,
doá-lhe o lugar da Falta.
... ele sentia
uma nostalgia imensa.
Como se a floresta
não lhe bastasse,
o desejo por algo
belo-distante,
ausente.
... Um dia os dois
se encontraram,
se amaram,
a floresta mergulhou no mar,
o mar abraçou a floresta,
suas sementes se misturaram
e uma criança nasceu...
E ela tinha no seu corpo
um pouco de mar
e um pouco de selva...
Ah! Felicidade maior
não poderia haver,
e até pensaram que seria eterna...
Foram morar lá em cima,
no lugar do Pai,
os três.
Felizes...
O pai, no seu mundo verde,
velho amigo, conhecido.
A mãe, no mundo verde,
mistério com que sempre
sonhara e desejara.
A criança, feliz,
por ser selva e ser mar.
Mas o tempo passou
e a felicidade acabou.
No peito da jovem
foi crescendo uma dor.
Primeiro era saudade mansa
que virou tristeza:
e a floresta...
virou prisão...
E o jovem que tanto amara
ficou estranho,
... seu carcereiro.
Ah! Ela já não podia amar a selva
e sua face se transtornou.
E o mar que morava nela ficou sinistro,
uma tempestade enorme
cresceu por dentro...
E a jovem virou tristeza
por se ver assim, tão feia.

(... nós amamos as pessoas
por aquilo de belo que elas fazem
nascer em nós.
Como se fossem espelhos.
Se nos vemos belos
naqueles olhos que nos contemplam,
nós as amamos.
Mas, se nos vemos feios, as odiamos...)
E ela então compreendeu que,
por belas que as matas fossem,
ela seria sempre uma estranha,
exilada, sem lar.
... Seu companheiro,
... entendeu...
Viveriam à beira-mar
para que ela reencontrasse
a felicidade perdida.
E assim aconteceu.
A alegria voltou.
Mas o tempo passou
e a saudade chegou,
agora ao peito do jovem,
onde a solidão foi crescendo,
tristeza de quem vive em degredo...
E a jovem que ele tanto amara
se transfigurou num mar de tristeza...
E a floresta que morava nele
se enfureceu,
e acordaram os bichos sinistros
que dormiam nela...
e aflorou tudo naquele rosto
outrora manso,
e ele ficou sinistro,
e havia fogo no seu olhar,
e espinhos cortantes no seu falar.
E ele chorou ao ver o espanto
nos olhos de sua criança,
espelhos tristes,
e sentiu que já não era o mesmo,
e nunca o seria,
longe da selva,
que era seu lar.
E então compreendeu que,
para continuar a ser belos,
era preciso que o mar e a floresta
fossem verdadeiros consigo mesmos
e morassem nos seus lugares.
E assim viveram, longe:
 a jovem, à beira-mar, saudosa da floresta,
o jovem, na floresta, com saudades do mar...
E é por isso que as pessoas se separam,

por mais que isso as dilacere,
para ficarem bonitas de novo
e voltarem aos mares e florestas perdidos...
Cada separação é uma busca
de um amor que se perdeu:
em cada partida, um desejo de reencontro.
Quanto à criança,
diziam os outros, que nada sabiam:
"Não tem onde morar..."
Ignoravam os mundos onde vivera
e que no seu corpo pequeno moravam
um mar e uma selva.

... ora estava com a mãe,
... ora com o pai...
não é que um lar lhe faltasse.
Ela era mar,
era floresta,
e podia sentir-se em casa
onde quer que estivesse.
Rubem Alves

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