Porta é tudo igual. Porta abre e fecha.
Parece que é só isso. Mas não. Tem porta de todo tipo.
Naquela cidade não era diferente. Tinha a porta da
igreja sempre reservada, tímida até. Bem diferente da porta do salão de beleza
que era moderna, extravagante, colorida. E a porta da escola, então? Séria ,
responsável, muito fechada, abre só na hora da entrada, do recreio e da
saída. Grandona e alegre, a porta do supermercado faz tempo que está de
regime mas carrega no bolso umas balinhas. Ela explica: - Nem é bem pra
fome, é pra vontade....
Já a do correio, de uniforme e sempre
com pressa, não gosta de deixar pra amanhã o que pode fazer hoje.
A porta da venda do Godofredo se incomoda com os
cupins e anuncia que as bananas estão em oferta, bem maduras, dez por
R$1,00.
A porta do bar da praça , meio brega,
toma caninha no fim da tarde, entorna um tantinho pro
santo e adora pastel.
Mas tem porta chique na cidade. É a
porta da Escola de Dança que sabe falar francês e
aprendeu balé!
Sorte a dela porque a porta da
casa do sapateiro não teve chance, sempre dando duro, com pouco
dinheiro e muito trabalho.
Muito trabalho também tinha a porta da
academia de ginástica, puxando peso, fazendo exercício
pra ficar bonita e pra ter um saúde de ferro.
Fora essas características pessoais, como
toda porta que se preze, elas abriam e fechavam, deixando
passar os habitantes da cidade. Que , aliás, nem se
importavam com elas. Só passavam , entrando , saindo. Isso as
incomodava bastante.
- A gente passa a vida juntos e eles nem ligam!
As vezes, o vento era parceiro.
Embalava as portas pra lá e pra cá.
Elas gostavam. Só não gostavam quando era
vendaval porque aí elas batiam com força. E tinha
hora que até doía.
A porta da casa da Dona Cecília, bem
velhinha, já tinha levado uma quantas batidas e se queixava de dor
nas costas.
Um belo dia , a porta salão olhou para a
porta da academia e comentou:
- A gente bem que podia sair um
pouco desta mesmice de abrir e fechar, fechar e abrir.
- Tem razão. Todo o dia esta ginástica de
abrir, fechar, fechar, abrir. Puxa vida! Dá um tempo.
A porta do bar, querendo agradar as amigas,
resolveu ver puxa-saco:
- Mas querida, com tanto movimento na academia,
você deve viver muitas emoções. Eu queria ser você. Aqui no bar, o
pessoal é bem sem graça...
Parece que as primeiras idéias
vieram destas três pioneiras mas foi a porta do sindicato quem
realmente começou o movimento.
- Companheiras ! Faz muito tempo que
prestamos serviços aos moradores desta cidade! As mais
antigas de nós abrem e fecham há cinquenta anos! E que ganhamos hoje?
Indiferença. A mais triste indiferença! Isto não pode continuar.
Porta também tem sentimentos. Porta também precisa de lazer.
Porta também é cidadã!
No início, a porta do sindicato parecia
estar falando sozinha. Mas, com o passar do tempo, seu discurso passou
a interessar.
- Essa porta sindical até que tem
razão. Estou me sentindo enferrujada. – disse a
porta da delegacia, que era de ferro.
O clamor foi aumentando ,mas e mais portas
falavam, dando força. Descontentamentos, algumas mágoas.
- Faz anos que eu não ganho uma
pintura, uma só pinturinha. O corredor e as salas cheiram a tinta
nova. Mas eu estou descascada e feia e, quando bate a chuva,
nossa! Fico ensopada. É um resfriado atrás do outro! – disse
a porta do hospital. Disse e espirrou . Espirrou tao
forte que ficou ainda mais descolorida. – Ai, ai!
- E eu, que nem pude opinar sobre
a cor que me pintaram? – a porta da creche suspirou. – Estou assim ,
neste vermelho-tomate horroroso faz anos!
A revolta foi crescendo. E, então , num belo dia,
elas disseram:
- Basta! Chega!
Numa reunião histórica , as portas resolveram
:
- Queremos ser valorizadas!
Em seguida decidiram:
- Temos direito ao lazer. Estamos
estressadas. Pra gente se distrair , faremos um baile!
- Isso ai! É uma idéia
original! Eles vão ter que prestar atenção na
gente! E, ainda por cima , nos divertimos muito!
Os habitantes da cidade se espantaram.
- Um baile ? UM BAILE? O que as
portas vão fazer num baile?
- Ora, o que vamos fazer ? Nos arrumar
, dançar, curtir. Não é isso que se faz num baile?
- Sim, mas...
O prefeito não teve o que dizer, confuso,
diante da comissão das portas que tinham ido à prefeitura para
informá-lo do baile.
- Nem mas nem meio mas – a porta do
sindicato foi cortante. E definitiva.
- Não tem volta. Está decidido.
Será em abril.
O professor Toninho, simpático às
idéias democráticas, apoiou a decisão.
-Não tem problema, sou a favor, vou
ajudar.
Dona Zuzu, dona da escola de dança,
olhou com carinho para sua porta , pensando:
-Ela vai fazer bonito, a nossa porta. Ela sabe
dançar tão bem!
Tiago Marceneiro, entusiasmado por madeira,
declarou:
-Serei parceiro! Madeira é comigo.
Querem passar verniz?
O padre Marcelo declarou:
- Estou pensando sobre o assunto. Portas são
criaturas de Deus. De qualquer modo, a igreja tem de estar sempre aberta.
Vamos ver . Vou meditar.
Mas nem todos estavam de acordo.
- Isso é uma grande besteira! –
declarou o delegado. –O que faremos na cadeia se a nossa
porta resolve sair para dançar?
- É só trocar de lugar – respondeu a porta
sindical. – Enquanto dançamos, vocês tomam conta das entradas.
- E das saídas. – completou a porta da
Academia.
-Mas, então , ficaremos com as casas abertas?
- Sim. Isso mesmo. Sempre que tiver baile.
O diretor do Clube Municipal, porém ,
recusou-se a emprestar o salão. Então as portas resolveram que
seria um baile ao ar livre, no parque.
Cheios de curiosidade, os moradores
acompanharam os preparativos.
Primeiro foi a limpeza do espaço da festa, na
maior praça da cidade.
Depois a colocação do palco onde a banda iria
tocar. E finalmente uns balões coloridos para alegrar o
ambiente.
Alguns moradores chegaram perto da
praça para olhar e acabaram ajudando, varrendo, atando os fios
entre as árvores para pendurar os balões.
Outros só sabiam reclamar.
- Uma loucura!
- É um desaforo!
Abril chegou. No dia combinado, as portas
desprenderam –se das dobradiças e foram enfeitar-se para o baile.
As casas ficaram assim, o espaço
vazio das portas preenchido pela visão das salas e das
pessoas lá dentro, muita coisa nova aparecendo aos olhos dos vizinhos e
dos que passavam pela rua.
- Olha só, a Dona Cotinha pintou a sala de amarelo!
Ficou linda. Ei, Dona Cotinha, parabéns!
Dona Cotinha sorri e fica feliz.
João vê O Seu Felício lendo e
grita lá do seu pátio:
-Boa tarde, Felício! Quer tomar um cafezinho?
Seu Felício levanta a cabeça , vê o vizinho pela
abertura da porta e se alegra. Fazia um tempão que não se
encontravam.
- Estou indo! Um momentinho!
Susana e Marisa , vendo a Sueli na
frente da TV, propõem:
- Oi, Su! Quer bater um papo com a gente?
- Legal! – a Sueli desliga a TV e
sai pra rua para encontrar as amigas.
Assim é que a cidade,antes apagada e
fria, vai se aquecendo ao calor de alguns reencontros
de alegrias, de amizades refeitas.
À noite, o baile foi o maior sucesso, as
portas dançaram até de madrugada.
Exaustas e felizes, cada uma
voltou direitinho para sua casa e, na manhã seguinte, o sol
encontrou na cidade um sorriso em cada casa.
Nas portas e nas pessoas.
Agora as portas continuam abrindo e
fechando.
E ninguém reclama quando
elas começam a se enfeitar.
Viu só?
Sugestão do avental no blog: http://bonequeiras2.blogspot.com.br/ .
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