Era uma vez uma menina que estava farta de estar em casa. Farta, farta,
farta que a mandassem para a escola; farta, farta, farta que se zangassem com
ela para comer; farta, farta, farta que a obrigassem a vestir o que não queria
e farta, farta, farta de não mandar nada em ninguém e toda a gente mandar nela!
Além disso, a menina estava amuada desde que tinha nascido, por lhe terem
chamado Cátia Vanessa, quando preferia mil vezes que a tivessem batizado como
Penélope.
Um dia queixou-se à mãe:
— Mãe estou farta, farta, farta! Quero outra vida, quero mandar muito!
E a mãe desatou-se a rir (os adultos às vezes riem nas alturas mais
estúpidas) e respondeu:
— Então faz-te à vida, filha: arranja casa e emprego, e depois mandas em
quem quiser obedecer-te.
A Cátia Vanessa, ou Penélope como gostava de se imaginar, foi ter com o
pai e repetiu-lhe a pergunta:
— Pai, pai, estou farta, farta, farta desta casa…
O pai, que estava a aparafusar uma estante, olhou para ela lá de cima, e
disse-lhe:
— Ó minha amiga, põe a trouxa às costas e faz-te à vida!
Estava tudo doido naquela casa, pensou a Cátia Penélope Vanessa. E, ainda
por cima, o pai e a mãe tinham aquela irritante mania de dizerem sempre a mesma
coisa, mesmo quando não estavam juntos. Se fossem os pais dos seus amigos
tinham-se atirado aos pés dos filhos a pedir-lhes para não se irem embora, a
prometerem presentes se ficassem… Mas os pais da Cátia Vanessa, tinham dito,
mais coisa menos coisa:
— Se não estás bem, muda-te!
Era demais! Agora ia mesmo fugir de casa, e depois é que os pais haviam de
ver! Pegou numa mala e atirou as suas coisas mais preciosas lá para dentro: uma
camisa de noite, a t-shirt com o golfinho de que mais gostava, uma
bolsinha com moedas de ouro que a avó, mãe da mãe, lhe tinha dado em pequenina,
e duas escovas de prata, herdadas da avó mãe do pai, que já tinha morrido.
Depois, bateu a porta com o maior estrondo que pôde e começou a descer a rua,
com um passo rápido. De vez em quando olhava por cima do ombro: de certeza que,
com aquela barulheira, os pais tinham percebido que fugira e vinham atrás dela…
Mas, estranhamente, nada. E a Cátia Penélope Vanessa teve de virar a
esquina, sabendo que nenhuma pessoa grande estava com ela… Quando se viu
naquela rua onde nunca tinha estado sozinha, sentiu-se um bocadinho assustada.
Assustada porque se tinha esquecido de pensar para onde ia. Não podia ir para
casa de avós, nem de tios, nem de amigas, porque, se não, ligavam logo aos pais
a dizer onde ela estava, e assim eles não se assustavam.
Sentou-se num degrau e pensou e pensou… Uma velhinha de lenço preto na
cabeça, que ia a passar, parou para lhe falar:
— Perdeste-te, menina? — perguntou a senhora.
A Cátia deu um salto e agarrou-se com mais força à sua mala. Mas, como
fora de casa era bem-educada (a maioria das pessoas são mais educadas fora de
casa, vá-se lá saber porquê!), respondeu:
— Eu fugi de casa, mas não tenho para onde ir.
E a velhinha, tentando esconder o sorriso, perguntou, curiosa:
— Porque é que fugiste?
Aí a menina ficou um bocado envergonhada:
— Porque queria mandar muito! E porque estava farta de receber ordens de
toda a gente… — murmurou baixinho. — E então os meus pais disseram para ir
procurar alguém que obedecesse às minhas ordens, porque na casa deles, mandavam
eles. É injusto!
A velhinha ficou muito séria. Pensou, pensou e depois respondeu:
— Já sei! Tenho exatamente aquilo de que precisas. Espera aqui um
bocadinho que já volto.
E a menina Cátia esperou, porque também não tinha para onde ir. E, minutos
depois, a velhinha voltou com um cachorrinho pequenino, de um castanho muito
clarinho, orelhas compridas e um focinho com bigodes. E disse:
— É para ti. Assim não vais sentir-te tão sozinha, e podes mandar nele. Mas
manda bem, porque os cães sabem muito bem o que é justo e o que não é. E se não
for, é natural e bem feito que te dê uma dentada. Mas se for bem mandado, dá-te
lambidelas e salta para brincar contigo.
A Cátia Penélope Vanessa ficou muito, muito contente. Disse obrigada
várias vezes e voltou a subir a rua inclinada até à porta de casa. E agora,
como é que ia voltar sem que fizessem troça dela? E se estivessem zangados?
Mas, mesmo antes de ter tido tempo de abrir a porta, a porta abriu-se e a mãe
agarrou-a ao colo, e apertou-a com muita força:
— Minha pateta, ainda bem que voltaste! Não conseguíamos viver sem ti!
E o pai desceu do escadote, atirou-a ao ar e disse:
— Não voltes a fugir, está bem?
E a Cátia mostrou-lhes o cão pequenino, e a mãe e o pai disseram que sim,
que podia ficar com ele, desde que lhe desse de comer, o levasse ao veterinário
e a passear à rua, o educasse a não fazer xixi dentro de casa e a não morder,
e a obedecer às ordens dos donos. A Cátia olhou espantada:
— Mas isso é o que vocês fazem comigo!
Desataram todos a rir e a Cátia Penélope Vanessa decidiu que pelo menos um
erro não ia repetir: não ia batizar o cão com um nome de que ele não gostasse.
Por isso perguntou-lhe como é que ele queria chamar-se. Como ele respondeu «Au-au»,
foi como «Au-au» que foi batizado.
Isabel Stilwell
Histórias para contar em 1 minuto e ½
Lisboa, Verso da Kapa, 2005
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