Era uma
flor pequenina. Rasteira. Rosada. Depois vermelha. Nasceu no Brasil, perto do
Corcovado, à beira do Lago da Solidão. Pela madrugada.
O Sol deixou
cair um raio, dois raios, pela madrugada. Sobre a terra úmida cheia de ervas
verdes.
E a flor
nasceu.
E mais
cresceu, embora pouquinho.
Passou uma
menina de cabelo negro dividido ao meio.
Era Maria
Sá, filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e de Sancho Sá.
Passou
triste pelo Lago da Solidão.
E viu a
flor que a madrugada ali pousara pela ponta de um dos seus raios.
E
sentou-se à beira do lago.
Contemplou
a própria cabeça, de
cabelo negro e risca ao meio refletida nas águas.
— Que
triste estou! — pensou.
Então apanhou a flor rosada e vermelha.
E pô-la sobre o cabelo negro, apartado, com risca ao
meio.
Do alto de
uma árvore, cantou um pássaro, que por sinal era um lindo sabiá:
— Maria Sá
peca! Maria Sá peca!
— Peco
porquê, seu sabiá?
E o lindo
sabiá repetia:
— Maria Sá
peca! Maria Sá peca!
Maria Sá
ficou espantada. Os olhos negros ainda maiores sob o negro cabelo de risca ao
meio.
— Sabes
porque peco, Sabiá?
— Sabo? Não sabo.
— Não é sabo. É sei! (Lá de verbos sabia Maria Sá.)
— Sabiá
sabe! Maria Sá peca!
— Mas peca
porquê?
— Maria Sá
peca!
Maria Sá
olhou-se mais no espelho das águas do Lago da Solidão.
Porque
havia de estar a fazer mal?
E o sabiá
olhava-a do alto da árvore cheia de verde.
E o Sol
também, com os seus milhões de
raios.
Maria Sá, filha
de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá, via a pequenina flor como um rosado
esplendor. Da cor das suas faces rosadas e dos seus lábios vermelhos.
E, então, perguntou às águas frias do Lago da Solidão:
— Porque
peco eu, sabes, Lago da Solidão? Porque diz isso o sabiá? Sabes?
— Sabo!
Lago da Solidão sabe!
Maria Sá peca!
— Mas peca
porquê?
E duas
lágrimas transparentes correram pelas faces rosadas de Maria Sá, filha de Rosa
Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá.
Como podia
ela saber?
Os olhos
espantados, cheios de perguntas, estavam mais brilhantes debaixo do cabelo
preto de risquinha ao meio.
E, então, perguntou ao Sol, aos seus milhões de raios:
— Sol,
sabes porque peco?
O Sol
ficou mais fraco, os raios enfraqueceram e nem um “sabo” respondeu.
Maria Sá ficou
mais triste ainda. Mas sentiu qualquer coisa num pé. Uma formiguinha preta
subia-lhe pela sandália de couro, fazia-lhe cócegas no pé.
E, com a
sua voz silenciosa de formiga, ciciou:
— Vou eu
responder-te, Maria Sá. Na minha humildade de formiga que tudo vai vendo,
escutando. Silenciosa.
“Pecas,
Maria Sá, porque te preocupas em saber porque estás triste e quando estás
triste. E apanhaste essa flor e puseste-a sobre a tua cabeça para te olhares no espelho das águas do Lago da
Solidão. Para
olhares o teu próprio rosto. Só a ti.
“Mas ouve
o conselho desta amiga, pequena formiga:
“Sobe à
montanha, verás mais flores, árvores, casas, sol, estrelas, pássaros, nuvens.
E, sobretudo, todos os homens que andam pelo mundo. Que esperam um sorriso do
teu rosto. E, se lhes sorrires, não serás mais triste nem desanimada. Vês que sei,
Maria Sá?”
E a
formiguinha desceu da sandália de couro como se descesse de uma montanha, e
soltou um suspiro, cansado. Já sobre a terra, com uma das patas bateu na testa
cansada de tanto pensar, de tão prolongado discurso.
Maria Sá,
filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) e Sancho Sá, olhou-a reconhecidamente.
Disse-lhe
adeus e obrigada. Mesmo obrigadinha.
E começou a andar.
Subiu ao
monte carregado de árvores, de perfumes, do canto dos pássaros.
E foi
encontrando flores, árvores, pássaros, estrelas, pessoas.
— Bom dia,
Maria Sá!
— Bom dia,
Fulaninho!
— Bom dia,
Maria Sá!
— Bom dia,
Sicraninho!
Sob os
seus pés iam nascendo milhões de flores rosadas e vermelhas.
E a flor,
que pusera na cabeça, era uma
estrela de alegria.
Maria Sá
nunca mais olhou o seu rosto triste nas águas do Lago da Solidão. O cabelo negro de risca ao meio emoldurava um
rosto de alegria. Uma beleza.
Essas
flores vermelhas chamam-se Marias Sapecas e nascem por todo o lado sem serem
semeadas.
Hoje toda
a gente, olhando aquelas flores, diz:
— Olha a
Maria Sapeca!
Flor de
alegria.
Flor que não é filha de Rosa Sá (quase Rosa Chá) nem de Sancho
Sá. Florzinha espelhada. Alegria mesmo. E filha de ninguém.
Matilde
Rosa Araújo
O gato dourado
Lisboa, Livros Horizonte, 1985
Texto adaptado
O gato dourado
Lisboa, Livros Horizonte, 1985
Texto adaptado
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