Havia um moço que gostava muito de jogar. Aos conselhos dos
mais velhos, costumava dizer que perdia apenas o seu dinheiro e que isto não é
muita coisa.
- Perde mais - dizia-lhe o velho pai. - Perde dinheiro, noites de sono, o tempo, a vergonha. E um dia perderá a alma.
O moço ria e continuava frequentando as casas de jogo todas as noites.
Um dia, depois de ter perdido tudo, ao jogar com um sombrio parceiro mal-encarado, não tendo mais o que jogar, ouviu espantado esta proposta:
- Se quiser continuar, eu caso mil escudos com a sua sombra.
- Com o quê?
- Com a sua sombra.
O moço pensou por um momento.
- Ora! A minha sombra não me fará grande falta. Até hoje não me serviu de nada.
Jogou e perdeu.
O parceiro enfiou a sombra num saco e antes de partir, falou:
- Se você quiser reaver o que perdeu, procure por mim na montanha Negra, daqui a um ano e um dia.
Muito perturbado, o moço foi para casa. O pai, que o achou mais sombrio que de costume, falou:
- Que aconteceu?
E o moço não queria contar. Mas não tardou que toda a gente soubesse e reparasse que ele não tinha sombra, que o deixou muito malvisto no povoado, e fazia com que todos o apontassem com o dedo, por onde quer que andasse. Aí ele compreendeu que a sombra fazia muita falta. Demais o pai lhe dizia:
- Estás vendo? Você perdeu a alma. Era o diabo o seu parceiro. Carregou a sua sombra. Carregou a sua alma. Ah! infeliz.
Apavorado, o moço resolveu procurar a sombra na tal montanha Negra, e pôs-se a caminho.
Chegou à montanha Negra, encontrou a casa do diabo, que era realmente aquele seu mal-encarado parceiro, e pediu-lhe a sombra.
- Ah! Sim, pois não. Dou-a se você plantar uma fila de bananeiras de manhã, e à tarde você colher, nessas mesmas bananeiras, bananas maduras para o jantar.
O moço foi para a roça do diabo, sentou-se num toco e começou a chorar. Avaliava agora a sua pouca sorte, e como o jogo tinha sido a sua perdição.
Ora, o diabo tinha uma filha muito bonita, chamada Branca-Flor. Branca-Flor espiou pelas abertas do mato o moço sentado no tronco caído e gostou dele. Apareceu-lhe e falou:
- Não tem nada, não. Deite-se aqui no meu colo.
Aninhou a cabeça do moço no colo, pegou a catar-lhe cafuné, a conversar com ele, perguntando muitas coisas, de mansinho, até que ele adormeceu. Então, arredou-lhe a cabeça, plantou as mudas, e se escondeu. Quando o moço acordou, muito assustado, pensando que nada tinha feito, e nas desgraças que iam lhe acontecer, viu as bananeiras plantadas, com os cachos madurinhos pendendo. Muito alegre, apanhou as bananas e levou-as ao patrão. Este não desconfiou, mas a mulher dele, que era mais esperta, disse:
- Isto são artes de Branca-Flor.
No outro dia, quando o moço pediu a sombra, o diabo arranjou outra trova: deu-lhe um saquinho de feijão verde.
- Plante este feijão. Que ele brote e cresça, e feijão para o meu virado até de tarde. Senão...
O moço ainda não tinha voltado bem do espanto pelo que tinha acontecido na véspera. Foi para a roça mais triste e acabrunhado do que antes.
- Hoje eu não escapo.
Sentou no mesmo cepo e começou a chorar. Apareceu-lhe a moça bonita da véspera, aninhou-lhe a cabeça no colo, e começou a catar cafuné no seu cabelo até que ele dormiu.
A tarde, enroscavam-se nas estacas os cipós de feijão, com as vagens granadas, no ponto de colher. Radiante, o moço apanhou os feijões e levou deles uma peneira cheia ao diabo. O diabo aceitou o trabalho, mas a mulher, desconfiada, resmungou:
- Aqui andam artes de Branca-Flor.
No outro dia, mal o moço abriu a boca para falar da sombra, o diabo já falou:
- Atirei um anel no mar. Procure-o e traga-o aqui. Senão...
O moço foi para a praia, e, sentado num montinho de areia, começou a chorar. Apareceu Branca-Flor, chamou um peixinho, pediu-lhe o anel, e logo veio de volta o pequeno mensageiro de rabo de prata, com o anel na boca.
Então, o diabo também começou a desconfiar de tanta habilidade e resolveu matar o moço - com pretexto ou sem ele, e mais a filha que o tinha feito de bobo.
Fez uma cara muito hipócrita, devolveu-lhe a sombra, e falou:
- Pode ir embora amanhã.
Branca-Flor adivinhou tudo e se preveniu.
Pôs na cama do moço e na dela dois potes de barro cheios de vinho. Pegou um punhado de cinzas frias do fogão, um punhado de agulhas da caixa de costura, e um pedaço de sabão de cinza da despensa. Foi muito de mansinho procurar o moço que se sentara a um canto, meditando, e disse:
- Fujamos, que meu pai quer nos matar. Ele tem dois cavalos muito bons: um castanho e um preto. O castanho é rápido como o vento. Vá à cocheira e pegue o outro, que é rápido como o pensamento.
Em seguida, cuspiu três vezes no fogão, deu ao rapaz os embrulhinhos com as agulhas, o sabão e a cinza, para guardar, montaram e fugiram.
Já estavam longe quando repararam que o moço no escuro tinha selado o cavalo errado. Estavam fugindo no cavalo rápido como o vento. Era perigoso voltar, e Branca-Flor resolveu tocar para diante.
- Não faz mal, vamos neste mesmo. Até que papai descubra, estaremos longe.
Entrementes, na casa do diabo, todos se acomodaram. Deitou-se o diabo na sua cama de chamas, como uma salamandra. Deitou-se a mulher. Deitaram-se os diabos e diabinhos. Ficou tudo quieto. Quando nos grandes relógios dos salões silenciosos começaram a soar as badaladas da meia-noite, o diabo ergueu a cabeça do travesseiro e chamou: "Branca-Flor!"
Um cuspo no fogão respondeu:
- Já vou.
O diabo deitou e esperou. Esperou quase uma hora. E então tornou a chamar: "Branca-Flor!"
Outro cuspo respondeu com voz mais fraca:
- Já vou.
Esperou um pouco e chamou pela terceira vez: "Branca-Flor!"
Outro cuspo respondeu com voz mais fraca ainda, como de quem está quase dormindo:
- Já vou.
O diabo deixou passar mais um pouco e tornou a chamar. Ninguém respondeu. Aí ele se levantou, pegou um pau e foi à cama do moço e malhou até que viu escorrer o que julgou ser sangue. Foi à cama da filha e bateu até ouvir o rumor do que parecia ossos quebrando. Voltou para a cama e a mulher perguntou:
- Estão mortos?
- Estão sim. Escorreu sangue.
- Estão mortos mesmo? Você verificou?
- Os ossos estalaram.
A mulher não acreditou e foi ver. E viu: potes quebrados, vinho escorrendo, e nem sinal, nem do moço, nem da moça.
- Fugiram! - gritou.
Descoberto o logro, o diabo correu à cocheira, selou o cavalo preto e saiu atrás deles. Estava quase alcançando os fugitivos, quando Branca-Flor, olhando para trás, avistou a nuvem preta que vinha que vinha.
- Papai vem ai — avisou a moça. - Atire para trás o punhado de cinzas.
O moço assim fez e logo se formou um nevoeiro que baixou tão espesso como uma cortina. Não se enxergava nada. O diabo andou daqui, dali, pererecando, até que conseguiu passar. Quando estava pertinho outra vez, o moço, a mando de Branca-Flor, atirou o sabão. Formou-se um atoleiro de tijuco preto, tão grudento, que o diabo suou para escapar. Saiu dele enfezado, e foi outra vez atrás dos moços. Quando estava quase a alcançá-los pela terceira vez, o moço jogou as agulhas. Formou-se um espinheiro tão cerrado, que o diabo, aí, não teve remédio senão voltar. Chegou ao inferno e encontrou a diaba furiosa.
- Mulher - explicava ele todo atrapalhado. - Eu não pude atravessar o espinheiro...
- Que espinheiro? Que mané espinheiro o quê?! Aquilo era um punhado de agulhas. Se você não fosse tão besta, tinha passado.
O diabo tornou a montar, louco da vida, e foi perseguir os moços de novo.
Branca-Flor olhou para trás e viu a nuvem preta. Vinha que vinha. Ela transformou então o cavalo num lago, os arreios numa barca, o moço num pescador e ela mesma num cisne branco. O diabo chegou ao rio, perguntou ao pescador se tinha visto um moço e uma moça, assim assim, montados num cavalo alazão. O pescador nada respondia. Aí, o diabo, danado com o pouco caso dele, voltou ao inferno. Branca-Flor desmanchou a mágica, montaram de novo e galoparam para a frente, no seu cavalo escuro, rápido como o vento. Mas a mulher do diabo atiçou-o:
- Bobo de uma figa! Não viu que o moço era o barqueiro e Branca-Flor, o cisne branco?
O diabo montou e saiu.
- Desta vez trago aqueles dois de qualquer jeito.
- Melhor matá-los no caminho - insinuou a diaba.
- Ou isso.
Quando chegou ao lugar onde estivera o rio, cadê o rio? Voou ligeiro, pelo espaço, andando pelo mundo todo, em sua procura. Quando Branca-Flor olhou para trás, viu a nuvem preta. Vinha que vinha, feia em cima deles.
Então ela transformou o cavalo e os arreios numa roseira, ela numa rosa vermelha e o moço num beija-flor. O diabo passou, olhou as roseiras e a rosa e o pássaro, nem desconfiou. Correu mundo no seu cavalo veloz como o pensamento e não encontrou ninguém. Voltou ao inferno, e a mulher, assim que o viu, foi logo gritando:
- Bocó! Bocó de fivela! Não viu uma roseira, com uma rosa vermelha?
- Bem bonita disse o diabo.
- Não seja bobo! A rosa era Brança-Flor, e o beija-flor, o moço. Volte e traga os dois!
O diabo foi, mas Branca-Flor, e o moço, e a roseira e o beija-flor, tudo tinha sumido. Lá adiante, passou por uma igreja e o padre estava na porta, puxando a corda do sino:
- Seu Padre! Não viu um moço e uma moça, montados num cavalo alazão?
O padre dizia:
- É hora da missa.
E tocava o sino: - delém, delém...
- Seu Padre, estou perguntando...
- É hora da missa...
Delém, delém, delém.
E o diabo foi para o inferno.
Não adiantou a diaba gritar, ralhar, pintar os canecos com ele.
- Já estou cansado. Não vou mais atrás de ninguém. Vá você.
Branca-Flor e o moço seguiram viagem. Nunca mais que viram a nuvem preta.
- Meu pai desistiu - ela falou. E riu.
Com pouco, chegaram a uma cidade. Ela ficou escondida à beira do caminho, e o moço foi à cidade, procurar trabalho, para depois levá-la com ele. Antes que fosse, Branca-Flor deu-lhe um anel, e disse:
- Não tire este anel do dedo...
- Nunca?
- Nunca. Senão você me esquece.
- Não tiro — o moço prometeu.
E foi embora.
Andou muito pela cidade, perguntando se havia trabalho, até que foi dar na casa de uma família muito rica. Ajustou de trabalhar lá. Logo no primeiro dia, esqueceu a recomendação de Branca-Flor, e tirou o anel para lavar as mãos. No mesmo instante, foi o mesmo que nunca tivesse existido Branca-Flor. Esqueceu-a como esqueceu o diabo, a montanha Negra, o inferno, a perseguição, tudo. Ficou mais de ano na casa. Por fim, namorou uma das moças, filha do patrão, e tratou casamento com ela. E tornou a passar outro ano.
Num mês de maio, muito sereno e claro, ia ser o casamento. Às vezes o moço parava olhando para fora, para as estradas, ou se detinha diante de uma rosa; ou perscrutava o lago, tentando apanhar uma ideia que lhe fugia. Nas vésperas do casamento, apareceu uma moça muito bonita e pediu para fazer os doces do dia.
- Sou doceira como não há igual no mundo.
A cozinheira experimentou o serviço dela, achou que era assim mesmo, como a moça dizia, e ela principiou o trabalho. Fez manjares finos, cocadinhas, furrundum e pé-de-moleque, papo-de-anjo, baba-de-moça, bem-casados, quindim, queijadinha, espera-marido, pudim, bem-bocado, beijinho.
E o bolo. Ah! o bolo. Alto como uma torre, todo branco de neve, e lá em cima a moça botou um casal de bonecos.
Chegou o dia do casamento, e já estavam todos à mesa para o banquete. O noivo e a noiva, nas suas roupas de gala, sentaram-se à cabeceira da mesa. Então a boneca virou-se para o boneco e perguntou:
- Tu não te lembras daquele dia em que meu pai te mandou plantar mudas de bananeiras e eu então te vali?
Os convidados puseram-se a rir. Nunca tinham visto brinquedo tão interessante. Os risos dobraram quando o boneco ensaiou um passo de dança, sacudiu a cabeça e resmungou com voz grossa:
- Não me lembro. Não me lembro.
E a bonequinha, delicadamente, insistia:
- E não te lembras quando meu pai te mandou plantar feijão verde e eu então segunda vez te vali?
- Não me lembro, não me lembro.
- E não te lembras quando meu pai jogou o anel no fundo do mar e eu mandei um peixinho buscar?
- Não me lembro, não me lembro.
- Não te lembras quando meu pai queria nos matar e nós fugimos num cavalo veloz como vento?
- Não me lembro, não me lembro.
- Não te lembras quando viraste um pescador, e eu, um cisne branco?
- Um cisne branco... - murmurou o boneco. - Um cisne branco... Ai! Não me lembro.
- Não te lembras quando viraste um beija-flor e eu, uma rosa vermelha?
- A rosa... - repetiu o boneco, pensativo, com o dedo na testa. - A rosa vermelha. Ai! Não me lembro.
- Não te lembras quando viraste padre e eu a santa que estava no altar?
Nessa hora, o boneco deu um salto e respondeu:
- Já me lembro!
O moço, que estava sentado ao lado da noiva, levantou-se agitado. Lembrara-se de tudo e queria ver a moça que tinha feito os bonecos.
Encontrou-a toda vestida de noiva, casaram-se e foram muito felizes. Houve muito doce, muita música, uma festa de arromba. Eu ia trazer uns doces e repartir com vocês, mas, quando ia passando na ponte, os cachorros do vigário correram atrás de mim e derrubei os doces n’água.
(GUIMARÃES, Ruth. Lendas e fábulas do Brasil)
- Perde mais - dizia-lhe o velho pai. - Perde dinheiro, noites de sono, o tempo, a vergonha. E um dia perderá a alma.
O moço ria e continuava frequentando as casas de jogo todas as noites.
Um dia, depois de ter perdido tudo, ao jogar com um sombrio parceiro mal-encarado, não tendo mais o que jogar, ouviu espantado esta proposta:
- Se quiser continuar, eu caso mil escudos com a sua sombra.
- Com o quê?
- Com a sua sombra.
O moço pensou por um momento.
- Ora! A minha sombra não me fará grande falta. Até hoje não me serviu de nada.
Jogou e perdeu.
O parceiro enfiou a sombra num saco e antes de partir, falou:
- Se você quiser reaver o que perdeu, procure por mim na montanha Negra, daqui a um ano e um dia.
Muito perturbado, o moço foi para casa. O pai, que o achou mais sombrio que de costume, falou:
- Que aconteceu?
E o moço não queria contar. Mas não tardou que toda a gente soubesse e reparasse que ele não tinha sombra, que o deixou muito malvisto no povoado, e fazia com que todos o apontassem com o dedo, por onde quer que andasse. Aí ele compreendeu que a sombra fazia muita falta. Demais o pai lhe dizia:
- Estás vendo? Você perdeu a alma. Era o diabo o seu parceiro. Carregou a sua sombra. Carregou a sua alma. Ah! infeliz.
Apavorado, o moço resolveu procurar a sombra na tal montanha Negra, e pôs-se a caminho.
Chegou à montanha Negra, encontrou a casa do diabo, que era realmente aquele seu mal-encarado parceiro, e pediu-lhe a sombra.
- Ah! Sim, pois não. Dou-a se você plantar uma fila de bananeiras de manhã, e à tarde você colher, nessas mesmas bananeiras, bananas maduras para o jantar.
O moço foi para a roça do diabo, sentou-se num toco e começou a chorar. Avaliava agora a sua pouca sorte, e como o jogo tinha sido a sua perdição.
Ora, o diabo tinha uma filha muito bonita, chamada Branca-Flor. Branca-Flor espiou pelas abertas do mato o moço sentado no tronco caído e gostou dele. Apareceu-lhe e falou:
- Não tem nada, não. Deite-se aqui no meu colo.
Aninhou a cabeça do moço no colo, pegou a catar-lhe cafuné, a conversar com ele, perguntando muitas coisas, de mansinho, até que ele adormeceu. Então, arredou-lhe a cabeça, plantou as mudas, e se escondeu. Quando o moço acordou, muito assustado, pensando que nada tinha feito, e nas desgraças que iam lhe acontecer, viu as bananeiras plantadas, com os cachos madurinhos pendendo. Muito alegre, apanhou as bananas e levou-as ao patrão. Este não desconfiou, mas a mulher dele, que era mais esperta, disse:
- Isto são artes de Branca-Flor.
No outro dia, quando o moço pediu a sombra, o diabo arranjou outra trova: deu-lhe um saquinho de feijão verde.
- Plante este feijão. Que ele brote e cresça, e feijão para o meu virado até de tarde. Senão...
O moço ainda não tinha voltado bem do espanto pelo que tinha acontecido na véspera. Foi para a roça mais triste e acabrunhado do que antes.
- Hoje eu não escapo.
Sentou no mesmo cepo e começou a chorar. Apareceu-lhe a moça bonita da véspera, aninhou-lhe a cabeça no colo, e começou a catar cafuné no seu cabelo até que ele dormiu.
A tarde, enroscavam-se nas estacas os cipós de feijão, com as vagens granadas, no ponto de colher. Radiante, o moço apanhou os feijões e levou deles uma peneira cheia ao diabo. O diabo aceitou o trabalho, mas a mulher, desconfiada, resmungou:
- Aqui andam artes de Branca-Flor.
No outro dia, mal o moço abriu a boca para falar da sombra, o diabo já falou:
- Atirei um anel no mar. Procure-o e traga-o aqui. Senão...
O moço foi para a praia, e, sentado num montinho de areia, começou a chorar. Apareceu Branca-Flor, chamou um peixinho, pediu-lhe o anel, e logo veio de volta o pequeno mensageiro de rabo de prata, com o anel na boca.
Então, o diabo também começou a desconfiar de tanta habilidade e resolveu matar o moço - com pretexto ou sem ele, e mais a filha que o tinha feito de bobo.
Fez uma cara muito hipócrita, devolveu-lhe a sombra, e falou:
- Pode ir embora amanhã.
Branca-Flor adivinhou tudo e se preveniu.
Pôs na cama do moço e na dela dois potes de barro cheios de vinho. Pegou um punhado de cinzas frias do fogão, um punhado de agulhas da caixa de costura, e um pedaço de sabão de cinza da despensa. Foi muito de mansinho procurar o moço que se sentara a um canto, meditando, e disse:
- Fujamos, que meu pai quer nos matar. Ele tem dois cavalos muito bons: um castanho e um preto. O castanho é rápido como o vento. Vá à cocheira e pegue o outro, que é rápido como o pensamento.
Em seguida, cuspiu três vezes no fogão, deu ao rapaz os embrulhinhos com as agulhas, o sabão e a cinza, para guardar, montaram e fugiram.
Já estavam longe quando repararam que o moço no escuro tinha selado o cavalo errado. Estavam fugindo no cavalo rápido como o vento. Era perigoso voltar, e Branca-Flor resolveu tocar para diante.
- Não faz mal, vamos neste mesmo. Até que papai descubra, estaremos longe.
Entrementes, na casa do diabo, todos se acomodaram. Deitou-se o diabo na sua cama de chamas, como uma salamandra. Deitou-se a mulher. Deitaram-se os diabos e diabinhos. Ficou tudo quieto. Quando nos grandes relógios dos salões silenciosos começaram a soar as badaladas da meia-noite, o diabo ergueu a cabeça do travesseiro e chamou: "Branca-Flor!"
Um cuspo no fogão respondeu:
- Já vou.
O diabo deitou e esperou. Esperou quase uma hora. E então tornou a chamar: "Branca-Flor!"
Outro cuspo respondeu com voz mais fraca:
- Já vou.
Esperou um pouco e chamou pela terceira vez: "Branca-Flor!"
Outro cuspo respondeu com voz mais fraca ainda, como de quem está quase dormindo:
- Já vou.
O diabo deixou passar mais um pouco e tornou a chamar. Ninguém respondeu. Aí ele se levantou, pegou um pau e foi à cama do moço e malhou até que viu escorrer o que julgou ser sangue. Foi à cama da filha e bateu até ouvir o rumor do que parecia ossos quebrando. Voltou para a cama e a mulher perguntou:
- Estão mortos?
- Estão sim. Escorreu sangue.
- Estão mortos mesmo? Você verificou?
- Os ossos estalaram.
A mulher não acreditou e foi ver. E viu: potes quebrados, vinho escorrendo, e nem sinal, nem do moço, nem da moça.
- Fugiram! - gritou.
Descoberto o logro, o diabo correu à cocheira, selou o cavalo preto e saiu atrás deles. Estava quase alcançando os fugitivos, quando Branca-Flor, olhando para trás, avistou a nuvem preta que vinha que vinha.
- Papai vem ai — avisou a moça. - Atire para trás o punhado de cinzas.
O moço assim fez e logo se formou um nevoeiro que baixou tão espesso como uma cortina. Não se enxergava nada. O diabo andou daqui, dali, pererecando, até que conseguiu passar. Quando estava pertinho outra vez, o moço, a mando de Branca-Flor, atirou o sabão. Formou-se um atoleiro de tijuco preto, tão grudento, que o diabo suou para escapar. Saiu dele enfezado, e foi outra vez atrás dos moços. Quando estava quase a alcançá-los pela terceira vez, o moço jogou as agulhas. Formou-se um espinheiro tão cerrado, que o diabo, aí, não teve remédio senão voltar. Chegou ao inferno e encontrou a diaba furiosa.
- Mulher - explicava ele todo atrapalhado. - Eu não pude atravessar o espinheiro...
- Que espinheiro? Que mané espinheiro o quê?! Aquilo era um punhado de agulhas. Se você não fosse tão besta, tinha passado.
O diabo tornou a montar, louco da vida, e foi perseguir os moços de novo.
Branca-Flor olhou para trás e viu a nuvem preta. Vinha que vinha. Ela transformou então o cavalo num lago, os arreios numa barca, o moço num pescador e ela mesma num cisne branco. O diabo chegou ao rio, perguntou ao pescador se tinha visto um moço e uma moça, assim assim, montados num cavalo alazão. O pescador nada respondia. Aí, o diabo, danado com o pouco caso dele, voltou ao inferno. Branca-Flor desmanchou a mágica, montaram de novo e galoparam para a frente, no seu cavalo escuro, rápido como o vento. Mas a mulher do diabo atiçou-o:
- Bobo de uma figa! Não viu que o moço era o barqueiro e Branca-Flor, o cisne branco?
O diabo montou e saiu.
- Desta vez trago aqueles dois de qualquer jeito.
- Melhor matá-los no caminho - insinuou a diaba.
- Ou isso.
Quando chegou ao lugar onde estivera o rio, cadê o rio? Voou ligeiro, pelo espaço, andando pelo mundo todo, em sua procura. Quando Branca-Flor olhou para trás, viu a nuvem preta. Vinha que vinha, feia em cima deles.
Então ela transformou o cavalo e os arreios numa roseira, ela numa rosa vermelha e o moço num beija-flor. O diabo passou, olhou as roseiras e a rosa e o pássaro, nem desconfiou. Correu mundo no seu cavalo veloz como o pensamento e não encontrou ninguém. Voltou ao inferno, e a mulher, assim que o viu, foi logo gritando:
- Bocó! Bocó de fivela! Não viu uma roseira, com uma rosa vermelha?
- Bem bonita disse o diabo.
- Não seja bobo! A rosa era Brança-Flor, e o beija-flor, o moço. Volte e traga os dois!
O diabo foi, mas Branca-Flor, e o moço, e a roseira e o beija-flor, tudo tinha sumido. Lá adiante, passou por uma igreja e o padre estava na porta, puxando a corda do sino:
- Seu Padre! Não viu um moço e uma moça, montados num cavalo alazão?
O padre dizia:
- É hora da missa.
E tocava o sino: - delém, delém...
- Seu Padre, estou perguntando...
- É hora da missa...
Delém, delém, delém.
E o diabo foi para o inferno.
Não adiantou a diaba gritar, ralhar, pintar os canecos com ele.
- Já estou cansado. Não vou mais atrás de ninguém. Vá você.
Branca-Flor e o moço seguiram viagem. Nunca mais que viram a nuvem preta.
- Meu pai desistiu - ela falou. E riu.
Com pouco, chegaram a uma cidade. Ela ficou escondida à beira do caminho, e o moço foi à cidade, procurar trabalho, para depois levá-la com ele. Antes que fosse, Branca-Flor deu-lhe um anel, e disse:
- Não tire este anel do dedo...
- Nunca?
- Nunca. Senão você me esquece.
- Não tiro — o moço prometeu.
E foi embora.
Andou muito pela cidade, perguntando se havia trabalho, até que foi dar na casa de uma família muito rica. Ajustou de trabalhar lá. Logo no primeiro dia, esqueceu a recomendação de Branca-Flor, e tirou o anel para lavar as mãos. No mesmo instante, foi o mesmo que nunca tivesse existido Branca-Flor. Esqueceu-a como esqueceu o diabo, a montanha Negra, o inferno, a perseguição, tudo. Ficou mais de ano na casa. Por fim, namorou uma das moças, filha do patrão, e tratou casamento com ela. E tornou a passar outro ano.
Num mês de maio, muito sereno e claro, ia ser o casamento. Às vezes o moço parava olhando para fora, para as estradas, ou se detinha diante de uma rosa; ou perscrutava o lago, tentando apanhar uma ideia que lhe fugia. Nas vésperas do casamento, apareceu uma moça muito bonita e pediu para fazer os doces do dia.
- Sou doceira como não há igual no mundo.
A cozinheira experimentou o serviço dela, achou que era assim mesmo, como a moça dizia, e ela principiou o trabalho. Fez manjares finos, cocadinhas, furrundum e pé-de-moleque, papo-de-anjo, baba-de-moça, bem-casados, quindim, queijadinha, espera-marido, pudim, bem-bocado, beijinho.
E o bolo. Ah! o bolo. Alto como uma torre, todo branco de neve, e lá em cima a moça botou um casal de bonecos.
Chegou o dia do casamento, e já estavam todos à mesa para o banquete. O noivo e a noiva, nas suas roupas de gala, sentaram-se à cabeceira da mesa. Então a boneca virou-se para o boneco e perguntou:
- Tu não te lembras daquele dia em que meu pai te mandou plantar mudas de bananeiras e eu então te vali?
Os convidados puseram-se a rir. Nunca tinham visto brinquedo tão interessante. Os risos dobraram quando o boneco ensaiou um passo de dança, sacudiu a cabeça e resmungou com voz grossa:
- Não me lembro. Não me lembro.
E a bonequinha, delicadamente, insistia:
- E não te lembras quando meu pai te mandou plantar feijão verde e eu então segunda vez te vali?
- Não me lembro, não me lembro.
- E não te lembras quando meu pai jogou o anel no fundo do mar e eu mandei um peixinho buscar?
- Não me lembro, não me lembro.
- Não te lembras quando meu pai queria nos matar e nós fugimos num cavalo veloz como vento?
- Não me lembro, não me lembro.
- Não te lembras quando viraste um pescador, e eu, um cisne branco?
- Um cisne branco... - murmurou o boneco. - Um cisne branco... Ai! Não me lembro.
- Não te lembras quando viraste um beija-flor e eu, uma rosa vermelha?
- A rosa... - repetiu o boneco, pensativo, com o dedo na testa. - A rosa vermelha. Ai! Não me lembro.
- Não te lembras quando viraste padre e eu a santa que estava no altar?
Nessa hora, o boneco deu um salto e respondeu:
- Já me lembro!
O moço, que estava sentado ao lado da noiva, levantou-se agitado. Lembrara-se de tudo e queria ver a moça que tinha feito os bonecos.
Encontrou-a toda vestida de noiva, casaram-se e foram muito felizes. Houve muito doce, muita música, uma festa de arromba. Eu ia trazer uns doces e repartir com vocês, mas, quando ia passando na ponte, os cachorros do vigário correram atrás de mim e derrubei os doces n’água.
(GUIMARÃES, Ruth. Lendas e fábulas do Brasil)
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