Era num sábado. Estava em festas o elegante e suntuoso palacete do visconde, a mais rica habitação que havia no Rio Comprido. Casava-se a formosa Matilde, filha predileta do dono da casa, e ele festejava esse acontecimento o mais ruidosamente possível. O palácio achava-se todo ornado por dentro e fora; uma esplêndida banda de música executada no saguão trechos escolhidos das óperas mais em moda, e a criadagem vestida com suas finas librés, circulava de um lado para outro, dispondo os últimos preparativos da ornamentação. O cortejo havia partido às duas horas da tarde para a igreja, e na rua apinhava uma multidão curiosa de assistir à chegada dos noivos, ao regressarem da cerimônia nupcial. Enquanto assim se dispunham as coisas para a folgança no suntuoso palacete do visconde, uma cena muito diferente se desenrolava em uma casa de mais que modesta aparência da mesma rua. Em cima de uma mesa que havia na sala dessa casa, que era então um pardieiro, quase em ruínas, via-se, num caixão dos mais baratos que a Santa Casa fabrica, o corpo de uma moça amortalhada. Duas velas alumiavam-na, e em redor permaneciam as pessoas da família e alguns vizinhos, todos gente pobre. Pai e mãe e irmãos dessa criatura morta desfaziam-se em amargo pranto e sentiam a alma rasgar-se pela mais fina das dores, nesse momento em que se ia fechar o caixão e levá-lo a um carro fúnebre parado à porta. Pobre gente! Essa de quem iam separar-se para sempre era a sua boa Lúcia, filha e irmã mais velha, que todos estimavam tanto! Pobre Lúcia! Ela era o braço direito daquela família. Do seu trabalho vinham os minguados mil réis com que se pagava à venda, depois que o pai ficara aleijado e a mãe entisicara. A boa Lúcia sempre alegre, sempre resignada! Como não deviam sofrer os pobrezinhos, naquele terrível transe por que passavam. O pai de Lúcia era um rude operário de obra grossa, um carpinteiro e tivera a infelicidade de quebrar uma perna, caindo de um andaime em que trabalhava. Essa desventura foi o início de todas as desgraças que assaltaram a família. Conduzido para a Santa Casa, lá esteve quatro longos meses, entre a vida e a morte; e a mulher e os filhos começaram a curtir duras necessidades, pois o pai nada ganhava. O taverneiro já fechava a cara quando iam às compras, e por mais que a mulher do carpinteiro e Lúcia, sua filha, se matassem numa tina a lavar roupa, o dinheiro não chegava para coisa alguma. A mãe de Lúcia era uma mulher franzina e muito disposta para moléstias do peito. Com o trabalho excessivo que fazia, logo começou a deitar escarros de sangue pela boca, e dentro em breve nada mais pôde fazer. O carpinteiro tivera alta do hospital, mas não podia ainda trabalhar. Assim a pobre família achou-se na mais negra miséria. No entanto Lúcia trabalhava cada vez mais. De dia não se arredava da tina de lavar roupa, de noite costurava até o galo cantar. Não pôde resistir por mais tempo à semelhante canseira, e também caiu enferma. Uma circunstância veio ainda agravar o estado dos infelizes. A casa em que Lúcia morava pertencia ao mesmo visconde a que já nos referimos, e ele ordenara ao carpinteiro que se mudasse, já que não podia pagar os aluguéis. O visconde, apesar de opulento, era inflexível em questões de dinheiro. De nada valeram os rogos do pobre carpinteiro que a ele se dirigiu, arrastando as muletas e com as lágrimas nos olhos. O visconde manteve a sua ordem. "Se fosse a ouvir a choradeira de todos", dizia o titular, "bem depressa estaria reduzido a pedir esmola. Não era ele quem fazia as desgraças: era Deus. Pedissem-lhe contas". O carpinteiro teve que desocupar a casa e fora meter-se no pardieiro de que já falamos e que por piedade lhe cedera um outro carpinteiro, seu amigo e compadre. Era uma casa de todo imprópria para habitação humana: suja, úmida, acanhada. Nela os padecimentos de Lúcia foram a mais, e no fim de quinze dias a pobre rapariga entregava a alma a Deus. No entanto o cortejo nupcial tinha regressado da igreja, e de uma extensa fila de carros apearam os noivos, radiantes de felicidade, e bem assim a multidão dos convidados, homens e mulheres, abafados nas suas toaletes de uma rigorosa etiqueta. Logo que os carros despejavam a luxuosa carga que traziam, foram manobrados pelos cocheiros, muito tesos nas suas boleias, soberbos nas suas sobrecasacas de casimira cor de camurça e nas suas finas botas de canhão, e entraram na porta cocheira, aberta de par em par. Noivos e convidados começaram a subir os degraus do vestíbulo. A noiva ia de olhos baixos, deliciosa, no seu vestido de seda branca, linda como uma tentação, debaixo de uma grinalda de flores de laranjeira. Da fisionomia do noivo, um guapo mancebo de vinte e poucos anos, transpirava a maior ventura, parecendo tonto pela felicidade. Quando porém já tinham todos subido os três degraus do vestíbulo, o carro de enterro que transportava a pobre Lúcia ao cemitério chegava bem defronte ao palacete do visconde. Era um carro dos de ínfima classe, todo preto e de cortinas esmolambadas, guiado por um cocheiro negro, de cartola de oleado amarrotada, libré sebosa, tendo a fisionomia aguardentada, e que, encarrapitado na boleia, chupava com a maior indiferença deste mundo em cigarro de papel. Aquela mísera seguia para o cemitério sem o menor acompanhamento. O carro vinha descendo a rua tranquilamente, ao trote cansado de dois cavalos magros, ossudos. Quando, porém, chegou bem defronte ao palacete, os cavalos que pareciam incapazes de qualquer resistência, encabritaram-se e recusaram avançar. O cocheiro, que não esperava essa revolta dos pacíficos rocins, quase foi levado ao chão; e exasperado, vibrou o pinguelim no dorso das magras cavalgaduras, proferindo as mais cruas obscenidades. Noivos e convidados, todos voltaram o rosto para ver o que se passava na rua. Os cavalos do coche fúnebre persistiram em não avançar, e o cocheiro, levado ao maior auge da exasperação, desandava os bichos com cabo do pinguelim. Aquilo parecia mandado pelo diabo. Os cavalos pinoteavam, escouceavam, o cocheiro praguejavam como um possesso. Afinal dando os animais um violento arranco, a poder de pancadas, embicaram o coche para o lado do palacete, e nele o esbarraram. A lança do carro entrou pelo gradil do jardim que adornava a frente do edifício, e ali ficou a traquitana. Foi preciso que a criadagem do visconde desembaraçasse o carro e auxiliasse o cocheiro a conduzi-lo. Esse fato impressionou desagradavelmente a todos que faziam parte do cortejo nupcial, e uma senhora já idosa que entre eles se achava, exclamou aterrorizada: - "Um carro de enterro parar logo aqui, e isso em dia de casamento!... É mau agouro!... Sem que ninguém pudesse explicar a razão, o festim realizado em casa do visconde correu frio. Os próprios noivos sentiam-se tristes. O fato de ter parado um carro de enterro à porta do palacete, e naquele dia, roubava a alegria a todos. Como que se adivinhava uma grande desgraça. E esse mal-estar aumentou quando à meia-noite circulou na sala a notícia de que Matilde, a formosa noiva, tinha repentinamente adoecido. Logo cessaram as danças. As bandas de música calaram-se, e os convidados foram pouco a pouco retirando-se. Daí a meia hora só se achavam no palacete os parentes e amigos mais íntimos. Matilde estava realmente doente. Subitamente acometera-a uma violenta dor de cabeça, uma aflição, e dentro de uma hora ardia em febre intensa. O noivo ficou alucinado. O visconde, já terrivelmente impressionado com o caso do coche fúnebre, despachou criados em todas as direções para chamar médicos, que acudiram pressurosos. No entanto por mais esforços que empregassem os facultativos, não puderam aniquilar a enfermidade que acometera a inditosa moça. Consumia-se a olhos vistos. No dia seguinte já parecia um cadáver, tão pálida e abatida se achava. No terceiro dia não conhecia mais ninguém. No quarto havia perdido a fala. E na manhã do quinto dia, quando os pássaros começaram a trilhar sobre o arvoredo, cujas ramagens adornavam a janela do seu aposento, a pobre moça exalando um suspiro despediu-se da vida. Bem dissera a respeitável matrona que fizera parte do cortejo nupcial. O carro fúnebre esbarrando no gradil do palacete fora um mau agouro. O cadáver de Lúcia, a pobre filha do carpinteiro aleijado, viera chamar para a paz do sepulcro a filha do potentado, do opulento, que tirara um teto a seu pai, em momento de aflição e pobreza. Deus assim o quis. Tanto houve luto no casebre esburacado como no rico solar. Era preciso que o desumano titular também sentisse rasgar-lhe a alma o espinho da dor. (Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956) |
O CARRO DE ENTERRO
Meu nome é Telma Régia Soares Bezerra
Sou Professora. Minha formação Acadêmica: Pedagogia, Língua Portuguesa e Pós Graduação em Língua Portuguesa.
Trabalhei na Secretaria de Educação de Crateús, onde acompanhava o 3º Ano e Educação Infantil (PAIC e PNAIC) e Eixo do Leitor, com o qual me identifico muito. Sou fascinada por histórias... Leio de tudo, desde a literatura infantil até a literatura adulta. Alguns autores me encantam, como Ricardo Azevedo, Ruth Rocha, Elias José, Luis Fernando Veríssimo, Luis Câmara Cascudo... Ah.... Uma infinidade deles... E, além de ler, gosto de contar histórias, de preferência as de humor e de encantamento.
Meu nome é Elizabeth Macedo de Sousa. Sou Professora. Minha formação acadêmica - Psicopedagogia. Atuava na Secretaria de Educação com o Eixo do Leitor e as turmas de Educação Infantil.
Gosto muito de contar histórias e trabalhos de artes. Quando estou contando histórias, me transponho para o mundo da fantasia.
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