Todas as fadas do céu estavam
reunidas no salão do palácio, esperando a Rainha. O medo era tão grande que só
falavam cochichando. Todas tinham estado na festa de Clara Luz. E fora durante
a festa que os bichos tinham saído do horizonte e invadido o palácio.
Clara Luz estava sentada entre a
Fada-Mãe e a professora de Horizontologia.
- Minha filha, é melhor você
não dizer nada. Deixe que eu e a professora falamos, ouviu? - aconselhou a
Fada-Mãe, muito pálida.
Quando a Rainha entrou, seguida
pelas conselheiras e damas de honra, fez-se silêncio profundo.
A Rainha acomodou-se no trono e
depois olhou para as fadas, uma por uma.
Queria ver quem estava com a
cara de culpada.
Mas como todas estavam com a
cara de culpadas, ela ficou na mesma. Então berrou:
- Quem não tiver culpa fica
proibida de fazer cara de culpa!
Mas nisso, descobriu, lá no fim
da sala, uma fada pequena, com uma cara muito lampeira.
- Levante-se, menina. Você é a
única que está com cara diferente. Como
é seu nome?
- Clara-Luz, Majestade.
Por que está com cara diferente?
A Fada-Mãe quis responder pela filha:
- A cara dela é assim mesmo,
Majestade. Não repare.
- Reparo no que quiser --
respondeu a Rainha. - E ninguém pediu a sua opinião. Cale-se!
E com isso, felizmente,
esqueceu-se da cara de Clara Luz.
As fadas respiraram aliviadas.
- Minha filha, por favor, se
ela mandar você falar, fale o menos possível, sim? - pediu a Fada-Mãe.
- Agora - disse a Rainha,
tirando do bolso a carta da Bruxa Feiosa - eu quero que me expliquem por que
essa maluca me escreveu esta carta. E depois quero saber de onde veio a
bicharada que invadiu o palácio ontem à noite. Se esses dois assuntos não
ficarem bem explicados, vocês todas estão despedidas do céu.
As fadas estavam habituadíssimas
a serem despedidas pela Rainha. Mas dessa vez não entenderam bem:
- Despedidas do céu, Majestade? - gaguejaram elas.
- Exatamente. Quero tudo bem
explicado, ou dentro de dois dias não haverá mais nenhuma fada morando aqui no
céu. Só eu e as minhas damas e conselheiras que, aliás, não servem para nada.
As damas e conselheiras fizeram
uma reverência, agradecendo. As outras fadas ficaram desesperadas:
- Mas Majestade! Para onde
vamos nos mudar, assim de uma hora para
outra?
- Isso é com vocês. Expliquem
tudo ou serão despejadas.
Ninguém se atrevia a explicar
nada. No meio daquelas caras de medo, a única diferente era a de Clara Luz. A
Rainha logo notou isso:
- Levante-se, menina. Que cara
de coragem é essa que você está fazendo?
- Desculpe, Majestade, mas não
posso dizer. Mamãe me pediu para falar o menos possível. De modo que, se Vossa
Majestade permitir, vou tornar a me sentar.
- Não permito, não! Fique em pé
e fale o mais possível.
- Não posso, Majestade. Entre
Vossa Majestade e mamãe, gosto mais de mamãe, que eu conheço há muito mais
tempo.
Todas pensaram que a Rainha ia
atirar o cetro em cima de Clara Luz.
- Obedeça à Rainha, minha filha - disse a Fada-Mãe, aflita. - Fale!
- Pois não, para mim não custa
nada, porque gosto muito de falar. O que é mesmo que Vossa Majestade quer
saber?
- Explique imediatamente a sua
cara de coragem menina!
- Bem, Majestade, deve ser por
duas razões: a primeira é que não me importo de ser despejada. Para mim tanto
faz morar no céu ou em outro lugar. A segunda é
que posso contar tudo sobre a carta de Feiosa e a invasão dos bichos.
Ouvindo isso algumas fadas
desmaiaram, apesar de saberem que era proibido desmaiar no palácio. A Fada-Mãe
quis falar, mas a Rainha não deixou:
- Sua filha sabe muito bem se
explicar sozinha. Fale menina. Comece pela carta da bruxa.
- Não sei o que ela diz na
carta, mas com certeza está fazendo queixa porque coloriram a casa dela. Não é
isso?
- Como sabe? - perguntou a
Rainha.
- Sei porque quem coloriu fui
eu. Quer dizer, eu propriamente não. Eu colori a chuva e a chuva coloriu a casa
dela.
- Como? Você coloriu a chuva?
Não estou entendendo.
- Isso mesmo, Majestade. Colori
a chuva de diversas cores, para ver como ficava. E ficou lindo. As fadas lá da
Terra gostaram muito.
- Devo estar sonhando - disse
a Rainha. - Tudo isso, que essa menina está dizendo, só pode ser sonho meu.
- Não é sonho, não, Majestade.
Eu justamente, não gosto de sonhos. Em vez de sonhar com um leão dourado,
prefiro fazer um leão dourado.
- Menina! Foi você que fez
aquele leão que correu atrás de mim?
- Não, majestade. Aquele
infelizmente, não fui eu que fiz. Aquele foi a Professora de Horizontologia que
descobriu. No dia em que nós fomos ao Horizonte, ela descobriu que ele morava
no oitavo.
- No dia em que vocês foram
onde, menina?
- Ao horizonte, Majestade.
- Impossível. Horizonte é um
lugar para se ver de longe, não é lugar para se ir.
- Por que, Majestade?
A Rainha não soube responder,
então deu um berro:
- Porque é proibido e
acabou-se!
- Vossa Majestade queira
desculpar, mas eu não sabia que era proibido. Agora, se Vossa Majestade der
licença, tenho uma opinião para dar sobre esse assunto.
- Não dou licença nenhuma!
Sente-se imediatamente!
Clara Luz sentou-se. A Rainha
não resistiu à curiosidade:
- Levante-se! Dê a opinião
imediatamente!
- Majestade, a Gota Amarela,
que já esteve na Terra muitas vezes, sempre me conta histórias de lá. Um dia
ela me contou que houve um rei, lá no Brasil, chamado D. João VI que abriu os
portos.
- E daí? -- interrompeu a
Rainha. - Que é que tem isso com o horizonte?
- Tem muito, Majestade. Minha
opinião é essa: se D. João VI, que não era fada, pôde abrir os portos, por que
Vossa Majestade não pode abrir os horizontes?
A Rainha ficou olhando, muito
séria, para Clara Luz.
- Vossa Majestade, que é a
Rainha das Fadas, vai querer ficar atrás
de D. João VI?
- Nunca! Não admito que nenhum
rei ou rainha passa à minha frente!
- Nesse caso Vossa Majestade
não tem outro remédio senão abrir os horizontes.
A Rainha ficou na maior dúvida.
Por um lado, estava com uma inveja danada de D. João VI. Por outro lado, não
queria abrir os horizontes de jeito nenhum.
Afinal resolveu ter um acesso de
raiva:
- Quem é que manda neste céu,
afinal de contas? Que mais essa menina
fez? Que mais? Aposto que fez ainda muito mais coisas e ninguém me contou.
- Fiz sim, Majestade.
Felizmente, apesar de ter só dez anos, já fiz montes de coisas.
- Continue a falar - gritou a
Rainha. - Que mais você fez? Sou capaz de apostar que fez todos aqueles bichos
que invadiram o palácio. Estou vendo que só pode ter sido você.
- Não Majestade, eu não poderia
fazer aquela bicharada sozinha. Nós todas fizemos juntas.
- Nós todas quem?
- As filhas todas. De noite, as
mães ficaram loucas para entrar na brincadeira, mas no dia seguinte se
arrependeram, não sei por quê.
Ouvindo isso, mais algumas fadas
desmaiaram.
- Não sei por que estão todas
desmaiando - disse Clara Luz. -
Brincar de fazer bichos com as nuvens é um brinquedo tão antigo das fadas!
- Sim menina, mas não bichos
que saiam galopando, urrando e relinchando. As mães tinham obrigação de ensinar
isso às filhas. Assim que voltarem a si
do desmaio, vão receber ordem de despejo.
- Vossa Majestade vai me
desculpar, mas acho isso uma injustiça de Vossa Majestade.
A Fada-Mãe pôs as mãos na
cabeça:
- Minha filha, por favor, não
critique a Rainha!
- Não se meta! - ordenou a
Rainha. - Continue a criticar-me menina.
Era a primeira vez que a Rainha
mandava alguém criticá-la.
E só estava fazendo isso para
mostrar que quem dava ordens era ela e não a mãe de Clara Luz.
- Essas que Vossa Majestade
quer castigar - disse Clara Luz - são as que mais consultam o Livro das Fadas
para tudo e nunca tiveram coragem de ter a menor ideia. Só ultimamente é que
estavam começando a ter, mas Vossa Majestade, com esta reunião, acabou com as ideias delas.
- Bom, ainda bem - disse a
Rainha.
- Se Vossa Majestade quer
despejar alguém, é mais justo que despeje a mim, que nunca saí da Lição I do
Livro.
- Minha filha, por que você não
cala a boca? - perguntou a Fada-Mãe, desesperada.
- Mamãe, ela me disse para
falar o mais possível e você me disse para obedecer!
- Menina, que é que você disse?
Que nunca saiu da lição I?
- É sim, Majestade. Não é que
eu não goste de estudar, não. As aulas
da Professora de Horizontologia, por exemplo, eu adoro. Mas, as lições desse
Livro, detesto, porque não gosto de bolor.
- Bolor? Que bolor?
- Pois então, Majestade? Esse
Livro está coberto de bolor.
- Impossível, menina! Esse
Livro é um livro mágico, que não embolora.
- Embolora sim, Majestade. Se
Vossa Majestade reparar bem, verá que ele está coberto por uma camada fina de
bolor.
Essas palavras causaram uma
sensação na sala.
- Vão buscar o Livro. Para eu
mostrar a essa menina que ele não tem camadinha nenhuma! - gritou a Rainha.
As damas de honra foram
correndo. Todas as fadas que não estavam desmaiadas vieram rodear o trono.
Todo o mundo queria ver se o tal
bolor existia mesmo, ou não.
Fernanda Lopes de Almeida
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