A fada que tinha ideias - Capítulo 11 - Reunião no palácio






  Todas as fadas do céu estavam reunidas no salão do palácio, esperando a Rainha. O medo era tão grande que só falavam cochichando. Todas tinham estado na festa de Clara Luz. E fora durante a festa que os bichos tinham saído do horizonte e invadido o palácio.
  Clara Luz estava sentada entre a Fada-Mãe e a professora de Horizontologia.
  - Minha filha, é melhor você não dizer nada. Deixe que eu e a professora falamos, ouviu? - aconselhou a Fada-Mãe, muito pálida.
  Quando a Rainha entrou, seguida pelas conselheiras e damas de honra, fez-se silêncio profundo.
  A Rainha acomodou-se no trono e depois olhou para as fadas, uma por uma.
  Queria ver quem estava com a cara de culpada.
  Mas como todas estavam com a cara de culpadas, ela ficou na mesma. Então berrou:
  - Quem não tiver culpa fica proibida de fazer cara de culpa!
  Mas nisso, descobriu, lá no fim da sala, uma fada pequena, com uma cara muito lampeira.
  - Levante-se, menina. Você é a única que está com  cara diferente. Como é seu nome?
  - Clara-Luz, Majestade.
  Por que está com cara diferente?
  A Fada-Mãe quis  responder pela filha:
  - A cara dela é assim mesmo, Majestade. Não repare.
  - Reparo no que quiser -- respondeu a Rainha. - E ninguém pediu a sua opinião. Cale-se!
  E com isso, felizmente, esqueceu-se da cara de Clara Luz.
  As fadas respiraram aliviadas.
  - Minha filha, por favor, se ela mandar você falar, fale o menos possível, sim? - pediu a Fada-Mãe.
  - Agora - disse a Rainha, tirando do bolso a carta da Bruxa Feiosa - eu quero que me expliquem por que essa maluca me escreveu esta carta. E depois quero saber de onde veio a bicharada que invadiu o palácio ontem à noite. Se esses dois assuntos não ficarem bem explicados, vocês todas estão despedidas do céu.
  As fadas estavam habituadíssimas a serem despedidas pela Rainha. Mas dessa vez não entenderam bem:
  - Despedidas do céu, Majestade? - gaguejaram elas.
  - Exatamente. Quero tudo bem explicado, ou dentro de dois dias não haverá mais nenhuma fada morando aqui no céu. Só eu e as minhas damas e conselheiras que, aliás, não servem para nada.
  As damas e conselheiras fizeram uma reverência, agradecendo. As outras fadas ficaram desesperadas:
  - Mas Majestade! Para onde vamos nos mudar,  assim de uma hora para outra?
  - Isso é com vocês. Expliquem tudo ou serão despejadas.
  Ninguém se atrevia a explicar nada. No meio daquelas caras de medo, a única diferente era a de Clara Luz. A Rainha logo notou isso:
  - Levante-se, menina. Que cara de coragem é essa que você está fazendo?
  - Desculpe, Majestade, mas não posso dizer. Mamãe me pediu para falar o menos possível. De modo que, se Vossa Majestade permitir, vou tornar a me sentar.
  - Não permito, não! Fique em pé e fale o mais possível.
  - Não posso, Majestade. Entre Vossa Majestade e mamãe, gosto mais de mamãe, que eu conheço há muito mais tempo.
  Todas pensaram que a Rainha ia atirar o cetro em cima de Clara Luz.
  - Obedeça à Rainha, minha filha - disse a Fada-Mãe, aflita. - Fale!
  - Pois não, para mim não custa nada, porque gosto muito de falar. O que é mesmo que Vossa Majestade quer saber?
  - Explique imediatamente a sua cara de coragem menina!
  - Bem, Majestade, deve ser por duas razões: a primeira é que não me importo de ser despejada. Para mim tanto faz morar no céu ou em outro lugar. A segunda é  que posso contar tudo sobre a carta de Feiosa e a invasão dos bichos.
  Ouvindo isso algumas fadas desmaiaram, apesar de saberem que era proibido desmaiar no palácio. A Fada-Mãe quis falar, mas a Rainha não deixou:
  - Sua filha sabe muito bem se explicar sozinha. Fale menina. Comece pela carta da bruxa.
  - Não sei o que ela diz na carta, mas com certeza está fazendo queixa porque coloriram a casa dela. Não é isso?
  - Como sabe? - perguntou a Rainha.
  - Sei porque quem coloriu fui eu. Quer dizer, eu propriamente não. Eu colori a chuva e a chuva coloriu a casa dela.
  - Como? Você coloriu a chuva? Não estou entendendo.
  - Isso mesmo, Majestade. Colori a chuva de diversas cores, para ver como ficava. E ficou lindo. As fadas lá da Terra gostaram muito.
  - Devo estar sonhando - disse a Rainha. - Tudo isso, que essa menina está dizendo, só pode ser sonho  meu.
  - Não é sonho, não, Majestade. Eu justamente, não gosto de sonhos. Em vez de sonhar com um leão dourado, prefiro fazer um leão dourado.
  - Menina! Foi você que fez aquele leão que correu atrás de mim?
  - Não, majestade. Aquele infelizmente, não fui eu que fiz. Aquele foi a Professora de Horizontologia que descobriu. No dia em que nós fomos ao Horizonte, ela descobriu que ele morava no oitavo.
  - No dia em que vocês foram onde, menina?
  - Ao horizonte, Majestade.
  - Impossível. Horizonte é um lugar para se ver de longe, não é lugar para se ir.
  - Por que, Majestade?
  A Rainha não soube responder, então deu um berro:
  - Porque é proibido e acabou-se!
  - Vossa Majestade queira desculpar, mas eu não sabia que era proibido. Agora, se Vossa Majestade der licença, tenho uma opinião para dar sobre esse assunto.
  - Não dou licença nenhuma! Sente-se imediatamente!
  Clara Luz sentou-se. A Rainha não resistiu à curiosidade:
  - Levante-se! Dê a opinião imediatamente!
  - Majestade, a Gota Amarela, que já esteve na Terra muitas vezes, sempre me conta histórias de lá. Um dia ela me contou que houve um rei, lá no Brasil, chamado D. João VI que abriu os portos.
  - E daí? -- interrompeu a Rainha. - Que é que tem isso com o horizonte?
  - Tem muito, Majestade. Minha opinião é essa: se D. João VI, que não era fada, pôde abrir os portos, por que Vossa Majestade não pode abrir os horizontes?
  A Rainha ficou olhando, muito séria, para Clara Luz.
  - Vossa Majestade, que é a Rainha das Fadas, vai querer ficar  atrás de D. João VI?
  - Nunca! Não admito que nenhum rei ou rainha passa à minha frente!
  - Nesse caso Vossa Majestade não tem outro remédio senão abrir os horizontes.
  A Rainha ficou na maior dúvida. Por um lado, estava com uma inveja danada de D. João VI. Por outro lado, não queria abrir os horizontes de jeito nenhum.
  Afinal resolveu ter um acesso de raiva:
  - Quem é que manda neste céu, afinal de contas?  Que mais essa menina fez? Que mais? Aposto que fez ainda muito mais coisas e ninguém me contou.
  - Fiz sim, Majestade. Felizmente, apesar de ter só dez anos, já fiz montes de coisas.
  - Continue a falar - gritou a Rainha. - Que mais você fez? Sou capaz de apostar que fez todos aqueles bichos que invadiram o palácio. Estou vendo que só pode ter sido você.
  - Não Majestade, eu não poderia fazer aquela bicharada sozinha. Nós todas fizemos juntas.
  - Nós todas quem?
  - As filhas todas. De noite, as mães ficaram loucas para entrar na brincadeira, mas no dia seguinte se arrependeram, não sei por quê.
  Ouvindo isso, mais algumas fadas desmaiaram.
  - Não sei por que estão todas desmaiando - disse  Clara Luz. - Brincar de fazer bichos com as nuvens é um brinquedo tão antigo das fadas!
  - Sim menina, mas não bichos que saiam galopando, urrando e relinchando. As mães tinham obrigação de ensinar isso às filhas. Assim que voltarem  a si do desmaio, vão receber ordem de despejo.
  - Vossa Majestade vai me desculpar, mas acho isso uma injustiça de Vossa Majestade.
  A Fada-Mãe pôs as mãos na cabeça:
  - Minha filha, por favor, não critique a Rainha!
  - Não se meta! - ordenou a Rainha. - Continue a criticar-me menina.
  Era a primeira vez que a Rainha mandava alguém criticá-la.
  E só estava fazendo isso para mostrar que quem dava ordens era ela e não a mãe de Clara Luz.
  - Essas que Vossa Majestade quer castigar - disse Clara Luz - são as que mais consultam o Livro das Fadas para tudo e nunca tiveram coragem de ter a menor ideia. Só ultimamente é que estavam começando a ter, mas Vossa Majestade, com esta reunião, acabou com as ideias delas.
  - Bom, ainda bem - disse a Rainha.
  - Se Vossa Majestade quer despejar alguém, é mais justo que despeje a mim, que nunca saí da Lição I do Livro.
  - Minha filha, por que você não cala a boca? - perguntou a Fada-Mãe, desesperada.
  - Mamãe, ela me disse para falar o mais possível e você me disse para obedecer!
  - Menina, que é que você disse? Que nunca saiu da lição I?
  - É sim, Majestade. Não é que eu não goste de  estudar, não. As aulas da Professora de Horizontologia, por exemplo, eu adoro. Mas, as lições desse Livro, detesto, porque não gosto de bolor.
  - Bolor? Que bolor?
  - Pois então, Majestade? Esse Livro está coberto de bolor.
  - Impossível, menina! Esse Livro é um livro mágico, que não embolora.
  - Embolora sim, Majestade. Se Vossa Majestade reparar bem, verá que ele está coberto por uma camada fina de bolor.
  Essas palavras causaram uma sensação na sala.
  - Vão buscar o Livro. Para eu mostrar a essa menina que ele não tem camadinha nenhuma! - gritou a Rainha.
  As damas de honra foram correndo. Todas as fadas que não estavam desmaiadas vieram rodear o trono.
  Todo o mundo queria ver se o tal bolor existia mesmo, ou não.



Fernanda Lopes de Almeida


                        


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