O ônibus
estava lotado. Havia um único lugar vago perto da janela. Um homem estava
sentado no banco do corredor e parecia que as pessoas não tinham muita coragem
de pedir licença para aquele estranho. Ele exalava algo ruim, como se fosse uma
fera prestes a dar um bote. Até que a porta se abriu e duas pessoas entraram:
era uma mulher gorda e pesada com uma criança de olhos castanhos. A mulher
conseguiu um lugar que vagou quando ela entrou e logo que se sentou, disse para
a criança:
- Pede licença para aquele moço e senta ali. – ela apontou para o banco vazio ao lado da janela.
A menina com sua voz fina e com seu jeito educado disse, quase sussurrando, para o desconhecido mal encarado:
- Da licença!
Meio a contragosto, o homem afastou os joelhos e deixou a garotinha passar. Ela tinha um barquinho de madeira na mão e se acomodou da melhor maneira. Ela colocou o barquinho no seu colo e olhou para a fora. O seu olhar se cruzou com um garoto que olhava pela janela de um carro. O homem que dirigia o carro e que parecia ser seu pai, estava sério; e a mulher que estava ao lado do motorista, que parecia ser sua mãe, também estava com a cara fechada. A garotinha olhou para o garoto do carro e sorriu. O garoto continuou sério. Ela se virou para o homem que estava ao seu lado:
- Por que as pessoas parecem tão tristes quando elas parecem que tem tudo na vida?
O homem, que não esperava aquela pergunta, olhou-a de uma maneira estranha:
- Eu não sei. – ele respondeu, incomodado com a interferência da garota nos seus pensamentos.
A garotinha voltou a olhar pela janela, mas o carro já não estava mais ao lado do ônibus.
- Eu fui visitar meu pai. Ele não mora mais comigo. Ele não mora com ninguém. Ele está preso. Ele fez uma coisa má. Pessoas más vão para a cadeia. O senhor acredita mesmo nisso? Que todas as pessoas más vão para a cadeia?
O homem ficou confuso.
- Não , claro que não. – ele respondeu.
- Minha tia diz que as pessoas más vão para o inferno.
- Eu acho que é lá o lugar delas. – ele disse, mas sem saber mesmo porque tinha dito aquilo e se arrependeu.
- Meu irmão Pedro tinha 12 anos quando morreu. Ele morreu e-le-tro-cu-ta-do. Difícil falar essa palavra. Eu sempre falo repetindo bem as sílabas. Ele morreu porque ele foi pegar uma pipa que estava no fio. Você acha que meu irmão está no céu? Ele nunca fez nada de mal pra ninguém.
O homem ficou mais incomodado ainda:
- Deve estar num bom lugar.
- O senhor acredita em Deus?
O homem sentiu um calafrio. A senhora olhou para a menina e falou alto:
- Deixe o homem em paz, Maria Luíza, está vendo que ele não quer conversar?
A menina que se chamava Maria Luiza deu uma olhada rápida para a tia e depois olhou para o homem:
- O senhor não quer conversar? Acho que quer. Tem coisas dentro da gente que a gente não consegue dizer pra ninguém. É como se fosse algo que ficasse queimando por dentro. Falar é uma maneira de apagar este fogo que queima dentro da gente.
Ela ficou em silêncio. O homem pensou em se levantar, mas faltava muito para descer.
Maria Luíza olhou profundamente para dentro do os olhos do homem.
- Posso dizer uma coisa? Às vezes, eu vejo o meu irmão. Ele aparece nos meus sonhos, ele conversa comigo e está sempre sorrindo. O senhor acha que é ele mesmo ou é apenas a minha imaginação?
Antes que pudesse responder, a tia da menina gritou mais uma vez:
- Maria Luiza, será possível que você não fecha boca por um segundo? Você tem que conversar com todo mundo que vê pela frente?
Depois olhou para o desconhecido e se desculpou:
- O senhor me desculpe. A menina é muito faladeira.
- Não tem importância.
O homem se virou um pouco para a mulher e depois olhou para a criança. A menina estava com o olhar fixo nele:
- Minha tia não gosta que eu converse com estranhos. Ela diz que tem muita maldade no mundo. Eu sei que o senhor não é mal, mesmo com este revólver que está escondido no seu bolso. Eu só acho que o senhor não foi amado como devia ter sido. O senhor tem alguma coisa muito triste aí dentro. – e apontou para o meio do peito do desconhecido.
Instintivamente o homem apertou a arma por cima do bolso. A criança tinha visto o revólver quando ele se virou para falar com a tia. E agora?
- Não se preocupe. Eu não vou contar nada pra ninguém. Vira nosso segredo. Só espero que o senhor não use esta arma. Papai usou na mamãe e agora ele está na cadeia e ela tá enterrada.
O homem ficou atônito.
- O senhor acha errado eu nunca chorar? Eu nunca choro; não chorei nem pela mamãe e nem pelo Pedro, mas não sei, olhando para o senhor eu tenho vontade de chorar.
A tia interrompeu a conversa mais uma vez:
- Maria Luiza, se despede do moço, que nós vamos descer.
A menina olhou para o desconhecido:
- Olha, se este barquinho não tivesse sido presente do meu pai, eu dava pro senhor. Mesmo o senhor sendo grande, eu sei que a gente precisa de um barquinho pra virar criança de novo. Porque se a gente não virar criança de novo, a gente é capaz de cometer um monte de maldade por aí.
O homem sentiu o coração apertar. Por um momento, ele não queria deixar a criança ir embora, mas quando viu a menina se levantando, teve que dar passagem para ela. A garotinha ficou de pé ao lado dele:
- Posso te dar um beijo, moço? O senhor se parece com meu pai. Às vezes, ele me pede um beijo. Ele diz que pra aguentar aquele inferno, ele lembra do meu beijo. O senhor acha que um beijo pode salvar alguém? Se pudesse, eu beijava todo mundo. Eu ia ser a menina que ia salvar o mundo com beijos. O senhor acredita nisso? Você acha que um beijo pode salvar uma pessoa?
Sem esperar resposta, Maria Luiza deu um beijo estalado na bochecha do homem e saiu correndo atrás da tia, com uma gargalhada livre e espontânea.
Ela ainda acenou para ele da calçada e ele levantou a mão muito timidamente retribuindo o aceno.
Mais um pouco, ele desceu do ônibus. Parecia atordoado, como se estivesse bêbado. Demorou um tempo até atravessar uma avenida e quase foi atropelado. Foi xingado por um motoqueiro. Ele só se lembrava da menina e daquele beijo. Nunca sentiu tanto amor num beijo. Era morno e levemente molhado, como se fosse o beijo de um anjo.
O homem atravessou uma ponte e bem no meio da ponte, ele parou. Olhou para as águas sujas do rio poluído e, como se fosse um espelho, viu refletido na sujeira a imagem da menina com seu barquinho de madeira. Depois que a imagem se desvaneceu, ele tirou a arma do bolso e a jogou no rio. Ele esperou mais pouco e murmurou algumas palavras como se estivesse rezando. Depois respirou, aliviado. Em voz alta, respondeu para a menina do ônibus:
- Sim, Maria Luíza, um beijo pode salvar uma pessoa.
Suspirou. E com a alma leve e feliz, tomou o rumo de casa...
- Pede licença para aquele moço e senta ali. – ela apontou para o banco vazio ao lado da janela.
A menina com sua voz fina e com seu jeito educado disse, quase sussurrando, para o desconhecido mal encarado:
- Da licença!
Meio a contragosto, o homem afastou os joelhos e deixou a garotinha passar. Ela tinha um barquinho de madeira na mão e se acomodou da melhor maneira. Ela colocou o barquinho no seu colo e olhou para a fora. O seu olhar se cruzou com um garoto que olhava pela janela de um carro. O homem que dirigia o carro e que parecia ser seu pai, estava sério; e a mulher que estava ao lado do motorista, que parecia ser sua mãe, também estava com a cara fechada. A garotinha olhou para o garoto do carro e sorriu. O garoto continuou sério. Ela se virou para o homem que estava ao seu lado:
- Por que as pessoas parecem tão tristes quando elas parecem que tem tudo na vida?
O homem, que não esperava aquela pergunta, olhou-a de uma maneira estranha:
- Eu não sei. – ele respondeu, incomodado com a interferência da garota nos seus pensamentos.
A garotinha voltou a olhar pela janela, mas o carro já não estava mais ao lado do ônibus.
- Eu fui visitar meu pai. Ele não mora mais comigo. Ele não mora com ninguém. Ele está preso. Ele fez uma coisa má. Pessoas más vão para a cadeia. O senhor acredita mesmo nisso? Que todas as pessoas más vão para a cadeia?
O homem ficou confuso.
- Não , claro que não. – ele respondeu.
- Minha tia diz que as pessoas más vão para o inferno.
- Eu acho que é lá o lugar delas. – ele disse, mas sem saber mesmo porque tinha dito aquilo e se arrependeu.
- Meu irmão Pedro tinha 12 anos quando morreu. Ele morreu e-le-tro-cu-ta-do. Difícil falar essa palavra. Eu sempre falo repetindo bem as sílabas. Ele morreu porque ele foi pegar uma pipa que estava no fio. Você acha que meu irmão está no céu? Ele nunca fez nada de mal pra ninguém.
O homem ficou mais incomodado ainda:
- Deve estar num bom lugar.
- O senhor acredita em Deus?
O homem sentiu um calafrio. A senhora olhou para a menina e falou alto:
- Deixe o homem em paz, Maria Luíza, está vendo que ele não quer conversar?
A menina que se chamava Maria Luiza deu uma olhada rápida para a tia e depois olhou para o homem:
- O senhor não quer conversar? Acho que quer. Tem coisas dentro da gente que a gente não consegue dizer pra ninguém. É como se fosse algo que ficasse queimando por dentro. Falar é uma maneira de apagar este fogo que queima dentro da gente.
Ela ficou em silêncio. O homem pensou em se levantar, mas faltava muito para descer.
Maria Luíza olhou profundamente para dentro do os olhos do homem.
- Posso dizer uma coisa? Às vezes, eu vejo o meu irmão. Ele aparece nos meus sonhos, ele conversa comigo e está sempre sorrindo. O senhor acha que é ele mesmo ou é apenas a minha imaginação?
Antes que pudesse responder, a tia da menina gritou mais uma vez:
- Maria Luiza, será possível que você não fecha boca por um segundo? Você tem que conversar com todo mundo que vê pela frente?
Depois olhou para o desconhecido e se desculpou:
- O senhor me desculpe. A menina é muito faladeira.
- Não tem importância.
O homem se virou um pouco para a mulher e depois olhou para a criança. A menina estava com o olhar fixo nele:
- Minha tia não gosta que eu converse com estranhos. Ela diz que tem muita maldade no mundo. Eu sei que o senhor não é mal, mesmo com este revólver que está escondido no seu bolso. Eu só acho que o senhor não foi amado como devia ter sido. O senhor tem alguma coisa muito triste aí dentro. – e apontou para o meio do peito do desconhecido.
Instintivamente o homem apertou a arma por cima do bolso. A criança tinha visto o revólver quando ele se virou para falar com a tia. E agora?
- Não se preocupe. Eu não vou contar nada pra ninguém. Vira nosso segredo. Só espero que o senhor não use esta arma. Papai usou na mamãe e agora ele está na cadeia e ela tá enterrada.
O homem ficou atônito.
- O senhor acha errado eu nunca chorar? Eu nunca choro; não chorei nem pela mamãe e nem pelo Pedro, mas não sei, olhando para o senhor eu tenho vontade de chorar.
A tia interrompeu a conversa mais uma vez:
- Maria Luiza, se despede do moço, que nós vamos descer.
A menina olhou para o desconhecido:
- Olha, se este barquinho não tivesse sido presente do meu pai, eu dava pro senhor. Mesmo o senhor sendo grande, eu sei que a gente precisa de um barquinho pra virar criança de novo. Porque se a gente não virar criança de novo, a gente é capaz de cometer um monte de maldade por aí.
O homem sentiu o coração apertar. Por um momento, ele não queria deixar a criança ir embora, mas quando viu a menina se levantando, teve que dar passagem para ela. A garotinha ficou de pé ao lado dele:
- Posso te dar um beijo, moço? O senhor se parece com meu pai. Às vezes, ele me pede um beijo. Ele diz que pra aguentar aquele inferno, ele lembra do meu beijo. O senhor acha que um beijo pode salvar alguém? Se pudesse, eu beijava todo mundo. Eu ia ser a menina que ia salvar o mundo com beijos. O senhor acredita nisso? Você acha que um beijo pode salvar uma pessoa?
Sem esperar resposta, Maria Luiza deu um beijo estalado na bochecha do homem e saiu correndo atrás da tia, com uma gargalhada livre e espontânea.
Ela ainda acenou para ele da calçada e ele levantou a mão muito timidamente retribuindo o aceno.
Mais um pouco, ele desceu do ônibus. Parecia atordoado, como se estivesse bêbado. Demorou um tempo até atravessar uma avenida e quase foi atropelado. Foi xingado por um motoqueiro. Ele só se lembrava da menina e daquele beijo. Nunca sentiu tanto amor num beijo. Era morno e levemente molhado, como se fosse o beijo de um anjo.
O homem atravessou uma ponte e bem no meio da ponte, ele parou. Olhou para as águas sujas do rio poluído e, como se fosse um espelho, viu refletido na sujeira a imagem da menina com seu barquinho de madeira. Depois que a imagem se desvaneceu, ele tirou a arma do bolso e a jogou no rio. Ele esperou mais pouco e murmurou algumas palavras como se estivesse rezando. Depois respirou, aliviado. Em voz alta, respondeu para a menina do ônibus:
- Sim, Maria Luíza, um beijo pode salvar uma pessoa.
Suspirou. E com a alma leve e feliz, tomou o rumo de casa...
Paulo
Mohylovski
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